Hoje aqui ficam três opiniões de Miguel Cruz sobre géneros muito diferentes de BD, mas que não deixam de ser boas leituras.
Frankenstein
Na edição de 2021, é importante recordar, um dos autores mais procurados no Amadora BD foi Georges Bess, o que é compreensível, tratando-se de um dos nomes maiores da BD europeia, (tendo a sua adaptação de Drácula acabado de ser editada pela editora A Seita), e atenta a sua idade que vai tornando mais raras as suas presenças em festivais deste tipo.
Este simpático autor que trabalhou com o “Enorme” Alejandro Jodorowsky (ainda há pouco tempo reli o Incal, uma das minhas grandes referências) por exemplo no excelente Le Lama Blanc (de que em Portugal a Asa publicou o primeiro tomo, creio que no início do século), confessou numa recente entrevista que não queria nada, mas mesmo nada, realizar a adaptação de Drácula, porque achava que isso era tema do passado e que não havia nada a acrescentar. Eu pessoalmente tenderia a achar o mesmo, tantas já foram as adaptações em livro e cinema, mas isso seria ignorar a enorme qualidade gráfica do autor, quer no desenho, quer na estruturação da narrativa. E o sucesso de Drácula levou à subsequente adaptação de Frankenstein, que agora aproveito para comentar, apesar de a sua edição já ter alguns meses.
Também a preto e branco, esta obra é composta por 200 páginas da narrativa bem conhecida, mas em que cada prancha mostra o prazer do autor no enquadramento gótico, no aproveitamento dos espaços, dos rostos vincados e sofridos, na natureza opressiva, na revolta dos elementos, nos dilemas morais e consequentes raivas e revoltas. A evolução da criatura ao longo da narrativa é natural e bem retratada, a angústia do Dr. Frankenstein é palpável.
A história continua a não ser das minhas favoritas – creio que a primeira impressão que ficou da juventude, será muito difícil de alterar - mas o aproveitamento e adaptação por parte de Bess é muito boa, e o livro é um novo “tour de force” de um grande desenhador.
A leitura é demorada, pois a profundidade no tratamento da obra é grande, e ainda bem, pois o tema não é fácil de digerir nem particularmente agradável e, como sabemos, o romance de Mary Shelley não é particularmente positivo nem demonstra uma grande confiança na raça humana.
Uma edição cuidada, de grande qualidade gráfica, da editora Glénat.
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Toutes les Princesses Meurent Après Minuit
Todas as princesas morrem após a meia-noite. Um interessante e longo título de um autor para mim registado como perfeito desconhecido: Quentin Zuttion. Este jovem francês, vim a saber mais tarde, já tem algum histórico de publicações com o pseudónimo de Mr. Q.
O título e a capa geram curiosidade e remetem para um relato intimista, expectativa que se revela correta, pois toda a BD é passada em 24 horas (mais umas “pontinhas” no final) entre quadro paredes e um jardim de uma casa algures nos arredores de uma qualquer metrópole francesa.
Esse dia de agosto de 1997 é o dia da morte da princesa Diana, como vemos pelas notícias na televisão. Cinco personagens interagem sob os nossos olhos: Lulu, um rapazinho de 8 anos, o seu amigo Yoyo, um pouco mais velho, convidado para um dia de brincadeiras, Cam a irmã de Lulu, já com 15 anos, e os pais de Cam e Lulu. Há ainda uma aparição ocasional e escondida de um “namorado” de Cam, sendo que todo o dia é marcado pela presença de um sol abrasador (a pequena teenager bem o sentirá) e de um calor angustiante e exacerbador de comportamentos.
São 24 horas em que tudo corre mal, e a vida futura desta família não mais será a mesma.
O autor, nesta BD intimista, condensa em 24 horas e com um número limitado de atores, uma abordagem de diversidade ao amor. O amor que nasce (ou a sua curiosidade), o amor que cessa, o amor passageiro, o amor envergonhado (ou a sua dúvida) porque não correspondente aos padrões esperados.
Lulu brinca às princesas com bonecas que eram da sua irmã, criando uma narrativa condutora de toda a BD para abordar, com um desenho sensível e cores agradáveis, o tema da homossexualidade (e da procura do belo príncipe) e da relação com o pai, ao mesmo tempo que a relação dos pais dos dois jovens se vai desagregando.
É uma história (banal, de uma família comum) relatada com doçura, centrada numa criança de uma reconfortante pureza e inocência, em que tudo são pequenos nadas, mas em que todas as personagens saem necessariamente transformadas. O tom de “memória”, desenvolvido principalmente através das cores, explorando a ligação a recordações de outros momentos aparentemente banais de “crescimento” na vida de criança e de adolescente, é bem trabalhado.
Esta edição cuidada e elegante da Lombard constitui um exercício diverso do que tem vindo a ser recentemente publicado. Só por isso merece o destaque: Não apenas é uma obra bonita, como é diferente da “moda” o que, convenhamos, é refrescante.
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Tuskegee Ghost - tome 1
Tuskegee Ghost é um daqueles álbuns de Banda Desenhada que, normalmente não me atrairia particularmente. Em primeiro lugar, o título não é particularmente chamativo. Em segundo lugar, a sua inclusão na coleção cockpit da editora Paquet, remete-nos logo para uma aventura de aviação e, portanto, para um potencial déjà vu. Finalmente, o desenho, embora elegante e bastante legível, tem o seu quê de ilustração, que se parece sobrepor ao fluxo narrativo. E, no entanto, há aqui qualquer coisa que merece a atenção…
Esta BD vem romancear factos reais da segunda grande guerra, mais concretamente a participação dos Tuskegee airmen, um esquadrão exclusivamente composto por pilotos de cor, e aborda a luta deste grupo pela sua integração e por mínimos de respeito de colegas e da hierarquia. Desconhecia, de todo, esta história. E quando á minha hesitação relativamente ao título, estamos esclarecidos!
A narrativa inicia-se na Florida no ano de 1969, com a deslocação em viagem de Mark e da sua namorada, branca, para visitar os seus pais. Tudo começa a correr mal, desde uma agressão racista, ao mau ambiente entre filho e pai, quando se sabe que Mark abandonou os seus estudos e se dedicou à pilotagem.
Ao longo da BD vamos percebendo a raiz dos problemas que o pai de Mark (na capa) tem com o facto de o seu filho querer pilotar: tendo sido Tuskegee airmen, humilhado pelos seus superiores, esquecido pela história e traumatizado pelos combates e por um acidente em particular, o pai de Mark quer, efetivamente, uma vida diferente para o seu filho.
Portanto, quanto à minha segunda hesitação, a do déjà vu, está claro que ela não tem razão de ser. A abordagem é nova e interessante. Muito interessante, de facto. A luta na Europa e no Pacífico cria laços profundos de coesão entre os cidadãos, mas verifica-se que nem todos são iguais, ou nem todos têm tratamento e reconhecimento iguais.
Não se trata de um mero “documentário” ou apresentação de factos, sendo a narrativa realista e bem tratada, com fluidez e interesse, sabendo-se que a matéria tratada nos vai causar, necessariamente, momentos de incompreensão e angústia ou mesmo raiva.
Trata-se de um primeiro tomo, onde vamos gradualmente levantando o véu sobre a experiência traumática da participação na segunda grande guerra, com o pai de Mark a ter de consultar um psiquiatra que o ajuda a recordar e a expor os eventos vividos. A história fica em suspenso para um segundo tomo, e as suas últimas páginas deixam-nos com vontade de pegar imediatamente na continuação, que está a ser preparada por Benjamin von Eckartsberg e pelo desenhador Olivier Dauger.
Uma nota final para o desenho deste último, retomando o meu primeiro parágrafo. Há, efetivamente, uma componente de ilustração que ressalta do desenho, e que é posto em evidência pelas cores. E para minha grande surpresa, resulta muito bem, e é apropriada à história, e à envolvência do leitor nos acontecimentos quer da década de 40, quer da década de 60. Legibilidade máxima e boa variabilidade de enquadramentos.
Aguardemos, então, a conclusão, no tomo 2, deste relato da passagem de pai e filho, ambos bem avançados sobre os seus tempos, por situações desagradáveis e nem sempre bem conhecidas de racismo.
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