terça-feira, 8 de julho de 2025

A opinião de Miguel Cruz sobre "Le Paris des Dragons", de Sfar e Sandoval e "De Pierre et d’Os", de Krassinsky

 

Le Paris des Dragons

Grave, grave, grave! (ou, para quem goste: Ó Inclemência, Ó martírio…)! 

Com tantos e interessantes títulos para aqui mencionar, saltei alguns outros, leituras não menos interessantes, posso admitir que menos comerciais. Vamos, então, a uma pequena reparação de tão grave lapso. “O Paris dos Dragões” é um one shot que foi publicado há cerca de 9 meses já, sendo uma daquelas BDs que, na minha opinião, facilmente dividirá o público entre aqueles que a acharão inacreditavelmente má, e os que a acharão agradável e divertida. Eu faço parte deste último grupo, sendo que também reconheço que não constitui leitura marcante. Mas dito isto, já li bem pior, e é merecida uma referência a um desenho, na minha opinião, extraordinariamente bem conseguido.

É curioso notar que o argumentista desta BD é daqueles poucos com “o toque” – aquilo em que participa, brilha. Joann Sfar é um excelente argumentista, coisa que os leitores e as leitoras em português sabem desde “A Filha do Professor”, até ao “Gato do Rabino”, passando por Urani, obra a quatro mãos com David B. O desenhador, por sua vez também é um nosso conhecido, pelo menos conhecido dos frequentadores do festival de BD da Amadora: Toni Sandoval.

Tudo começa há um pouco mais de mil anos quando um dragão se aproxima de um cavaleiro que está a dormir com a sua espada ao lado. O dragão é atraído por aquela estranha criatura, no entanto esta, quando acorda assusta-se e, naturalmente, usa a espada para se defender. O dragão, ferido, reage como seria de esperar e temos o primeiro caso da história de cavaleiro grelhado. O barulho desta breve luta atrai dragões e cavaleiros e dá-se início a uma longa história de batalhas entre uns e outros!

Anos mais tarde, quando Paris ainda não é Paris, o monge Mabillon salva um dragão da perseguição de cavaleiros, fingindo que aquele é uma escultura, e estabelece um pacto com a raça dos dragões, que envolve o compromisso de “hibernação” daqueles, transformados em estátua, e a própria hibernação do Monge, que prepara tudo para poder voltar caso haja problemas, deixando a sua igreja aos cuidados de um dragão transformado em velha senhora.

Ora, em 1900, em plena Belle Époque, vamos ter “chatices” e o monge lá volta à vida para assistir à perturbação do compromisso dos dragões que, também eles, abandonam a sua situação de estátuas. Pelo meio, uma princesa havaiana e uma sereia invencível vão sendo perseguidas numa Paris rocambolesca, convergindo para se cruzar com a linha narrativa dos dragões.

Fantasioso, com bastante ação, divertido, mas com um humor bastante seco, e muito negro. Toni Sandoval presta-se ao jogo, e apresenta-nos o seu habitual desenho elegante, colorido, expressivo gótico, numa sequência narrativa tratada com mestria e variação de planos, com os “quadradinhos” a serem realizados sem contornos planos, mas com um estilo caricatural que é adaptado do seu colega Sfar. Muito interessante, com páginas que são, verdadeiramente, um deleite, e em que o desenhador aproveita muito bem a época e o local!

Uma edição cuidada da Glénat, com lombada em tela, e uma capa atrativa.





De Pierre et d’Os

Quando o calor começa a chegar – ouf! – as edições novas de banda desenhada começam a evaporar-se, para retomar depois de férias. É natural. Felizmente, do meu ponto de vista, há muitas leituras em atraso – afinal o tempo não chega para tudo, nem, verdadeiramente, para a maior parte – o que permite ir mantendo estas opiniões um pouco mais, apesar da canícula não estimular nem leitura de BDs, nem opinião sobre as mesmas.

De Pierre et d’Os é uma BD tão interessante, de tanta qualidade, que com evaporação ou sem ela, teria de aqui ser mencionada. Comecemos pelo autor: Jean-Paul Krassinsky é, para mim, um autor quase mítico. Eu explico: dele já ouço falar há tantos anos – um desenho excecional, um trabalho de documentação fantástico, um ótimo sentido de humor, vai estar no festival disto, vai estar no festival daquilo, e patati e patata… tanto é que nunca li absolutamente nada dele, nunca o vi, não sei quem é! Até este excelente álbum de Banda Desenhada onde encontramos, na contra-capa, um selo pequeno que diz Museu de História Natural. Curiosidades.

Passemos então à BD, uma adaptação de um romance de Bérangére Cournut. Com cerca de 200 páginas, esta BD arranca com um acontecimento terrível: o gelo ártico quebra-se e separa-se isolando a jovem Uqsuralik (e 4 cães) do resto da sua família. Longe de imaginar que é a última vez que os vê (ahhh, spoiler!), o momento em que Uqsuralik se vai distanciado do seu pai parado no meio do gelo constitui também o início de um percurso iniciático fascinante, para esta jovem que tem de sobreviver aos elementos e, veremos mais tarde, à maldade humana.

O desenho em aguarela de um espaço ártico ameaçador, desafiador, por vezes agradável, da forma de vida dos Inuítes, e de cruzamentos espaçados com xamanismo, é ABSOLUTAMENTE fantástico. A narrativa é fluída, apesar de intensa em acontecimentos, a compreensão dos acontecimentos é fácil, o retrato da coragem daquela jovem é atraente e envolvente, a descrição de um estilo de vida, hábitos e costumes, que nos é tão longínquo, é tão interessante e convincente que não hesito em dizer que esta é das BD marcantes do ano de 2025!

Acompanhamos Uqsuralik desde muito jovem até uma idade muito avançada, sempre com uma energia e uma confiança enternecedoras. De pré-adolescente a mulher, caçadora, mãe e mesmo xamane, acompanhamos a vida desta personagem com emoção, e através dela fazemos um conjunto de encontros que nos emocionam ou perturbam.

Um belo trabalho, editado pela Dupuis. Não sei se é uma adaptação exata do romance, mas depois de ler esta BD, a sensação é de que esta é a verdadeira história!


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