terça-feira, 18 de julho de 2023

A opinião de Miguel Cruz sobre: "Gauloises", de Igort e Andrea Serio e "Cherchez Charlie", de Moynot


Gauloises

Muito interessante esta BD que versa mais sobre a caracterização de ambientes e personagens do que sobre a máfia, apesar de o elemento base para a narrativa ser a contratação de um assassino para vingar o anterior assassinato de um marionetista particularmente apreciado por um chefe local da máfia. 

Igort escreve um argumento simples, mas extremamente eficaz na abordagem a um modo de vida, na explicação sobre a dificuldade ou incapacidade de dele sair ou escapar, no desenvolvimento da inevitabilidade, no aprofundar de maneiras de ser e razões subjacentes a determinadas ações e comportamentos. Andrea Serio desenha, com uma abordagem artística, mais de apresentação de texturas e ambientes, de forma credível e intensa uma Itália do Sul, de luzes e dificuldades de vida, e um conjunto limitado de personagens, duros, marcados pelo seu passado, e capturados pelo seu presente.

Ciro só fuma cigarros Gauloises, deixando atrás de si um cheiro característico, desde a época em que, jovem de calção curto, comete o seu primeiro assassinato. A sua relação com a mãe é complexa, e marcante para a sua migração mais para o Norte. Aldo é um ex-boxeur que procura uma vida nova em Milão onde acaba por se converter em homem de mão de uma “pessoa influente”. Dois assassinos temíveis na mesma cidade!

O encontro entre os dois parece ser inevitável, a amizade que criam será certamente efémera. Tudo nesta obra é minimalista, com algumas semelhanças nos western spaghettis, os diálogos são simples, diretos e frios, os ambientes são por vezes ensolarados, mas gélidos, o “duelo” vai sendo construído de forma visível, mas que fique bem claro: tudo é sugestão e relato intimista, não há cenas de tiroteio, nem moral da história.

Termino onde comecei: muito interessante, e frequentemente cinematográfico. Editado pela Futuropolis.




Cherchez Charlie


Recentemente publicado em Portugal com a sua adaptação de Nestor Burma, Emmanuel Moynot é um daqueles autores que vai dividindo opiniões, havendo quem frequentemente opine que o seu desenho não é suficientemente “finalizado”. O autor tem, efetivamente um estilo próprio, e uma carreira muito longa, com variadíssimas obras de grande qualidade e sucesso. Claro que o seu estilo resulta melhor para descrever e desenvolver determinados ambientes, e não será facilmente apropriado para certos tipos de histórias.

“Cherchez Charlie” é uma BD em que Moynot, ao invés do trabalho a preto e branco que apresenta frequentemente para narrativas policiais, se dedica a um trabalho de cores muito interessante, por vezes psicadélico, e extremamente bem aplicado. 

Estamos na Nova York do final da década de 60, “peace and love” & “flower power”, e Charlie Winkler é a personagem de referência, “transportador” de certos bens de um perigoso mafioso, que se vê enganado e assaltado em plena rua. Este acontecimento aparentemente simples vai desencadear uma série muito bem descrita e estruturada de acontecimentos que, observados pelos olhos de diversos protagonistas, seguem em crescendo de emoções até à “explosão” final. 78 páginas, acontecimentos determinantes e transformadores na vida de todas as personagens e, no entanto, tudo se passa num espaço reduzido de umas dezenas de horas.

Os excelentes diálogos são interessantes e convincentes, a teia narrativa é facilmente compreensível, mas nem sempre previsível, e agarra o leitor a partir da primeira página com curiosidade e vai conduzi-lo até à última com crescente entusiasmo, abordando diversos sub-mundos, com mergulho frequente no bas-fond novaiorquino. As consequências de algumas decisões pouco ponderadas, o acaso, e hábitos e vícios (como o do jogo), são bem interessantes de seguir através de um fio narrativo consistente.

Uma leitura muito agradável, com um desenho característico e muito útil para o caráter forte ou bem vincado da grande maioria das personagens. Editado pela Sarbacane, esta BD tem ainda uma capa, na minha opinião, muito bem conseguida. Aí, as três personagens de maior destaque são, da esquerda para a direita, a jovem hippie que desempenha o papel central no roubo da mala, Charlie de boca aberta, e o jovem agente do FBI que vai condicionar todo o desenrolar dos acontecimentos.




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