Em Silêncio
Uma BD em francês, com o título em português. Uma BD sobre portugueses que, em 1962, tentaram dar o “salto” para França – em silêncio. Uma BD de uma luso descendente Adeline Casier que conta a história do seu avô, um dos que conseguiu, com sucesso, escapar ao regime de Salazar e à guerra colonial, atravessando Espanha e os Pirenéus com vida.
Este tema que já fora aflorado, por exemplo, em “Les Portugais”, é aqui o centro da narrativa. Começamos com um tiroteio num bosque em Espanha, sem qualquer contexto e que nos marca logo a preocupação: quem? Será que a nossa personagem principal – que ainda não sabemos quem é – sobrevive? Depois continuamos com uma breve descrição de um lar unido, num contexto de miséria, injustiça e medo. Em França ganha-se melhor a vida que aqui, diz-se.
João decide, angustiado por deixar a sua mulher e as suas duas filhas, partir na aventura do “salto”. Cara aventura, e com metade para pagar com a chegada, perigosa, dura, incerta e partilhada com um conjunto de outros homens que se entreajudam em pequenos grupos, sem se conhecerem, com base nas capacidades e resistências de cada um.
A narrativa é interessante, dinâmica, consegue-nos envolver e emocionar bastante bem, mas sendo bastante terra a terra. Não há heroísmos, nem grandes aventuras. Há sobrevivência, tristeza e miséria, repetidas ao longo de dias e dias, e páginas e páginas. Uma emigração com riscos e perigos, em busca de uma vida melhor, e desafiando elementos naturais e crueldade humana. Não é alegre, é romanceado, mas o realismo é palpável, mesmo antes de se saber ser baseado numa história real.
Quanto a desenho, não será o meu estilo preferido, cada um os seus gostos, mas é eficiente na expressividade, na descrição contextual, na transmissão de ambientes, na perceção do risco, na visualização de miséria e sofrimento, no dinamismo da narrativa. Logo, a consistência texto/imagem está presente e conduz à conclusão essencial deste texto: recomendo fortemente a leitura desta BD integralmente a preto e branco.
São 160 páginas editadas num livro de capa mate elegante e significativa, em formato um pouco mais reduzido do que o habitual, pela Boîte a Bulles.
Strange Fruit
Que estranho nome, aparentemente. Strange Fruit é uma canção escrita por Abel Meeropol que faz referência ao enforcamento de negros no Sul dos Estados Unidos. Esses são os estranhos frutos das árvores do Sul. A canção foi escrita e cantada sem repercussões, até que Abel se encontra com a já então grande vedeta negra de jazz Billie Holiday, e acaba por a convencer a integrar essa canção no seu repertório.
A canção, para quem não a conhece, é bonita. Eu só conhecia a versão posterior de Nina Simone, e quando comprei a BD não tinha feito a relação. Já ouvi a versão de Billie Holiday, e recomendo, mas não conhecia absolutamente nada da história por detrás da canção, e a repercussão que a sua letra teve na vida destas duas personagens.
Segregacionismo, perseguições conduzidas por personagens absolutamente tenebrosas, as listas negras de afastamento de simpatizantes comunistas – recordo um filme interessante sobre o tema, Trumbo – tudo isso podemos ver e acompanhar nesta biografia de uma canção, uma quase biografia de Abel, que cruza com vários episódios da vida de Billie.
As dificuldades do primeiro em sobreviver no meio de Hollywood, letrista musical adaptado, professor dedicado, ativista de direitos humanos; os problemas da segunda com o sucesso e as relações pessoais abusivas, as suas dependências da droga e do álcool, a comparação da sua capacidade de adaptação com a de Louis Armstrong.
Strange fruits não é mais do que um catalisador de acontecimentos tristes e terríveis, numa época complicada nos Estados Unidos, sendo a BD com o mesmo nome mais do que uma biografia, um romance testemunha de acontecimentos que se iniciam no final do ano de 1939, e que se terminam com um reencontro entre as duas personagens em 1956. No final da BD, para além de algum enquadramento histórico e de algumas fotos, é evidenciado o papel que os dois filhos (adotivos, tema explicado na narrativa, desde o porquê a filhos de quem) de Abel tiveram na construção da história subjacente a esta BD e a anteriores emissões de rádio.
Editada pela Dupuis, publicada na coleção Aire Libre, esta BD com pouco mais de 100 páginas constitui uma leitura interessante e tem um desenho muito bem trabalhado na caracterização dos ambientes, com as cores a desempenharem um papel importante na captação da atenção dos leitores para os pormenores.