La Terre Verte
Não conheço ninguém que não tenha gostado de “O Burlão das índias” editado em Portugal em 2021 pela Ala dos Livros. À semelhança da BD de que aqui vos vou “falar”, também “O Burlão das Índias” tinha argumento de Alain Ayroles. Recentemente a Ala dos Livros publicou o primeiro tomo de “A Sombra das Luzes”, também de Ayroles.
Entre estas três BD, um vago elemento comum: os elementos históricos e a caracterização de época. Em todos eles, Ayroles forçou os seus desenhadores a detalhado trabalho de pesquisa.
Desta vez o desenhador é Hervé Tanquerelle, cujas “entregas anteriores foram “Le Ministre et la Joconde” (One Shot excelente) e “Le Dernier Atlas” (três volumes, excecional e tresloucado). O estilo de desenho de Hervé Tanquerelle adequa-se na perfeição ao desafio que tinha pela frente e torna um exercício de 250 páginas num conjunto muito atrativo. As expressões, os ambientes, a sequência narrativa, tudo é dominado com mão de mestre. Uma palavra para a coloração a cargo de Isabelle Merlet, que contribuem fortemente para a profundidade das imagens.
Os diálogos são cortantes e frequentemente divertidos. Mas a história não o é. Melancolia e loucura, megalomania e rancor. Estes são os elementos centrais de uma clara crítica a alguns comportamentos humanos, e particularmente (e não exclusivamente) à sede de poder.
Imagine-se se um Ricardo III, versão Shakespeare (a BD é dividida não em capítulos, mas em “Actos”, o que torna ainda mais óbvia a ligação), sobrevivente à Batalha de Bosworth, que depois de vestir as suas roupas a um pobre desgraçado caído em batalha, foge e acaba a acompanhar o bispo Mathias que vai tomar conta das almas no território da Groenlândia. Feio, a coxear e com uma corcunda, Ricardo vai tudo fazer para se tornar Ricardo I da Groenlândia.
O território é inóspito e perigoso, propício ao surgimento de um “chefe”, a população é reduzida e crédula (salvo raras exceções), o frio é muito, um único navio assegura o comércio com o exterior, o que aumenta a miséria de alguns e a ignorância de muitos, e as más relações com os experientes caçadores Inuítes fornecem a desculpa do inimigo externo.
Gostei bastante desta BD, mas há que reconhecer que ela é, essencialmente, sombria. A escolha da Groenlândia do século XV é uma escolha arriscada, que se percebe pela necessidade de estabelecer uma base de conquista de Ricardo, mas que não é fácil de abordar por ser limitada na sua densidade e, logo, na complexidade de relações humanas. As relações e ações-reações são por vezes teatrais. Mas esse era, diria eu, precisamente o objetivo.
Uma aposta ganha da Editora Delcourt, com uma capa conseguidamente inquietante.
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