quarta-feira, 16 de julho de 2025

A opinião de Miguel Cruz sobre "La Terre Verte", de Ayroles, Tanquerelle e Merlet e "Calle Málaga", de Brodel e Eacersall

 

La Terre Verte

Não conheço ninguém que não tenha gostado de “O Burlão das índias” editado em Portugal em 2021 pela Ala dos Livros. À semelhança da BD de que aqui vos vou “falar”, também “O Burlão das Índias” tinha argumento de Alain Ayroles. Recentemente a Ala dos Livros publicou o primeiro tomo de “A Sombra das Luzes”, também de Ayroles.

Entre estas três BD, um vago elemento comum: os elementos históricos e a caracterização de época. Em todos eles, Ayroles forçou os seus desenhadores a detalhado trabalho de pesquisa. 

Desta vez o desenhador é Hervé Tanquerelle, cujas “entregas anteriores foram “Le Ministre et la Joconde” (One Shot excelente) e “Le Dernier Atlas” (três volumes, excecional e tresloucado). O estilo de desenho de Hervé Tanquerelle adequa-se na perfeição ao desafio que tinha pela frente e torna um exercício de 250 páginas num conjunto muito atrativo. As expressões, os ambientes, a sequência narrativa, tudo é dominado com mão de mestre. Uma palavra para a coloração a cargo de Isabelle Merlet, que contribuem fortemente para a profundidade das imagens.

Os diálogos são cortantes e frequentemente divertidos. Mas a história não o é. Melancolia e loucura, megalomania e rancor. Estes são os elementos centrais de uma clara crítica a alguns comportamentos humanos, e particularmente (e não exclusivamente) à sede de poder.

Imagine-se se um Ricardo III, versão Shakespeare (a BD é dividida não em capítulos, mas em “Actos”, o que torna ainda mais óbvia a ligação), sobrevivente à Batalha de Bosworth, que depois de vestir as suas roupas a um pobre desgraçado caído em batalha, foge e acaba a acompanhar o bispo Mathias que vai tomar conta das almas no território da Groenlândia. Feio, a coxear e com uma corcunda, Ricardo vai tudo fazer para se tornar Ricardo I da Groenlândia.

O território é inóspito e perigoso, propício ao surgimento de um “chefe”, a população é reduzida e crédula (salvo raras exceções), o frio é muito, um único navio assegura o comércio com o exterior, o que aumenta a miséria de alguns e a ignorância de muitos, e as más relações com os experientes caçadores Inuítes fornecem a desculpa do inimigo externo.

Gostei bastante desta BD, mas há que reconhecer que ela é, essencialmente, sombria. A escolha da Groenlândia do século XV é uma escolha arriscada, que se percebe pela necessidade de estabelecer uma base de conquista de Ricardo, mas que não é fácil de abordar por ser limitada na sua densidade e, logo, na complexidade de relações humanas. As relações e ações-reações são por vezes teatrais. Mas esse era, diria eu, precisamente o objetivo. 

Uma aposta ganha da Editora Delcourt, com uma capa conseguidamente inquietante.




Calle Málaga

Perto de Málaga, numa deprimente zona turística balnear fora de época, um homem (sabemos mais tarde o seu nome Saïd) vagueia, pouco se cruzando com os locais, claramente com algo a esconder, e evidentemente perturbado. O que faz, porque está ali, como se sustenta, uma vez que claramente não trabalha, são as perguntas óbvias ao final de muito poucas páginas.

Esconde-se, foge das autoridades, mas também dos seus “associados”, não sabemos os detalhes. Permanentemente nervoso, toma precauções. O ambiente é depressivo, e no aparthotel onde habita, está só! Até um dia em que um outro personagem, de ar inofensivo aluga um quarto próximo. Com muita dificuldade e cautela, sempre de pé atrás, os dois homens acabam por estabelecer uma certa relação, e acabam por ir acampar na montanha, uma vez que o recém-chegado é um jovial professor de biologia, e apaixonado pela natureza, flora principalmente.

E eis que um dia, Saïd percebe que alguém esteve no seu apartamento. Esconde-se no apartamento do jovial professor e consegue observar umas inquietantes personagens a entrar no seu “território”, pelo que decide fugir.

E pronto, é isto que se passa neste thriller em que o relevante são os ambientes, o que permite ao desenhador Blondel apresentar-nos desenhos de página completa, por vezes duas páginas, razoavelmente opressivas, mas com um desenho de qualidade. Mais do que isso, o desenho consegue o que é necessário, numa BD em que os diálogos são limitados, e o que importa é sermos capazes de compreender o que vai naquelas cabeças!

Uma história simples, na coleção Grand Angle da editora Bamboo, em que após a sua conclusão tudo parece óbvio, mas em que o suspense é palpável. As cores reforçam a inquietação, a capa diz-nos ao que vamos, com uma personagem de rosto fechado e cara de poucos amigos, uma pequena sugestão de que está armado, atento a tudo o que o rodeia e a si mesmo, isolado, à espera do inevitável.

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