terça-feira, 27 de setembro de 2022

As opiniões de Miguel Cruz sobre: O novo Corto Maltese – Nocturnes Berlinois, de Canalès e Pellejero / A Short Story - La Véritable Histoire du Dahlia Noir, de Guillaume e Madoux

Aqui ficam duas novidades editadas recentemente, com destaque para o novo Corto Maltese (a editar pela Arte de Autor) e ainda A Short Story - La Véritable Histoire du Dahlia Noir, de Guillaume e Madoux. Boas leituras!







Corto Maltese – Nocturnes Berlinois

Certamente que todos concordaremos que a publicação, pela Casterman, de um novo Corto Maltese – com os autores responsáveis pelas suas novas aventuras, Juan Diaz Canalès (argumento) e Rubén Pellejero (desenhos e cores) – é um importante evento neste período de retoma editorial pós-férias de verão.

Nocturnes Berlinois é o 16º tomo de Corto Maltese e o quarto da dupla de autores – o primeiro foi editado em 2015 e o terceiro em 2019 – e era esperado com alguma antecipação, até porque nos últimos anos, a celebração de Hugo Pratt, criador da personagem, e autor marcante, foi realizada através de edições, exposições e efemérides, criando maior apetência no mercado de BD.

Esta aventura não se desenrola no mar, nem numa das habituais ilhas preferidas de Corto Maltese, mas sim entre Berlin e Praga, em meados da década de 20 do século passado. 

Apesar de uma natural redução no exotismo ambiental, os desenhos de Pellejero dão-nos uma imagem monumental e muito viva dos percursos do nosso aventuroso marinheiro. Para os fiéis da série original, a boa notícia é que, apesar de algum tratamento do contexto histórico, estamos perante uma aventura no domínio do esotérico, na boa linha de Pratt. Podem, por isso estar, por esse lado, descansados…

Ora bem: Berlin+Praga+década de 20=ascensão nazi e sua relação com o judaísmo. E é disso que esta BD trata, do cruzamento de Corto Maltese, um marinheiro livre, com seitas ultranacionalistas germânicas, com diversas intrigas políticas, amizades e fidelidades, a importância da Kabala, a discussão do “homem forte”. 

O nacional-socialismo vai dando os seus primeiros passos (numa cervejaria de Munique, um homenzinho com um bigode ridículo, é presença notada) num caldo de cultura de desigualdades, injustiça e discussão ideológica pós revolução industrial, I Grande Guerra e revolução russa, com muita inspiração no movimento nazi italiano – tema que como sabemos era muito caro a Hugo Pratt, arrastado na sua juventude para a Etiópia por um pai com simpatias nazis.

Os autores aproveitaram este interregno de cerca de 3 anos para nos dar muitos, muitos detalhes, quer na história, quer no desenho. O conhecimento histórico e a erudição é evidente sem, na minha opinião, prejudicar a fluidez da aventura. Mas percebo quem possa achar aqui algum excesso de referências. Depende muito de se gostar ou não do período histórico de base, nomeadamente República de Weimar.

Na minha opinião, e de forma simples, a história é muito boa, muito interessante, culturalmente relevante, socialmente crítica. O desenho é excecional, embora nos demoremos a habituar às cores inseridas digitalmente (imagino que este será o tema de discussão entre os puristas – a quem recomendo a versão a preto e branco, para evitar longas dissertações). Os autores respeitam, para além disso, todos os referências da obra de Hugo Pratt. Por isso, termino como comecei: a publicação deste novo tomo de Corto Maltese é, não apenas, um evento editorial, mas essencialmente uma leitura obrigatória. A sua publicação em língua portuguesa é, por isso, um motivo de regozijo.





A Short Story - La Véritable Histoire du Dahlia Noir

Trata-se de um One Shot de 64 pranchas, esta “Verdadeira História do Dália Negra”, com argumento de Renard Guillaume (RUN) e desenho de Florent Madoux. Dália Negra é o título de um filme de Brian de Palma, já com mais de 15 anos, e que tinha como principais protagonistas Josh Hartnett e Scarlett Johansson. Em 2013 a Casterman editou uma BD de sucesso com esse mesmo título, e com argumento de Matz e de David Fincher, e desenho de Miles Hyman. Quer o livro, quer a BD, são adaptações de um romance de James Ellroy.

A trama baseia-se no verídico assassinato de Elizabeth Short de 22 anos, cujo corpo foi encontrado abandonado, no frio mês de janeiro, num terreno baldio de Los Angeles, com o detalhe macabro de ter sido cortada ao meio pela cintura. O título Dália Negra decorre de um aproveitamento da imprensa, na época, conjugando a preferência da jovem por roupas negras, e o sucesso recente do filme Dália Azul, em que um ex-piloto é suspeito de assassinar a sua esposa, sendo Dália Azul o nome de um Night Club.

Já a BD de aqui vos falo hoje, em que a primeira parte do título aproveita o apelido da jovem para anunciar uma “curta história”, editada muito recentemente pela Rue de Sèvres, procura dedicar-se aos últimos meses de vida da jovem que pretendia fazer carreira em Hollywood, evitando, ao contrário das obras precedentes, o puro romance policial.

Jovem de origens humildes, chegada a Los Angeles sem dinheiro ou conhecimentos relevantes, o seu plano é de conseguir entrar num círculo restrito, para o que mente, manipula, arranja problemas, mete-se onde não deve, e irrita alguns, e suscita alguma compaixão.

O desenho é hiper-realista e se, para o meu gosto, por vezes as personagens parecem um pouco rígidas, o que é certo é que este elegante desenho é muito adequado para um exercício bem estruturado e conseguido de descrição da personagem e das suas motivações, dos estados de alma e das expressões faciais. É este o objetivo desta BD, com muito detalhe, muito trabalho de investigação e um grande dossier informativo como parte integrante da obra.

A composição de página é clássica, mas muito bem conseguida. A sordidez do backstage do caminho para o estrelato é palpável. Admito que, como não há, efetivamente, um mistério policial, uma solução para um crime (nunca resolvido, aparentemente), uma aventura, mas apenas um detalhado “documentário” de um fragmento de vida, esta BD não seja do gosto de todos. Não deixa por isso de ser uma obra interessante e cativante que merece a referência, e um estilo de BD não muito habitual.


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