segunda-feira, 23 de outubro de 2023

A opinião de Miguel Cruz sobre: "Slava 2 - Les Nouveaux Russes", de Gomont e "Le Fils de Pan", de Dori

 




Slava 2 - Les Nouveaux Russes

Pierre Henry-Gomont é um daqueles autores que vale a pena seguir, sempre surpreendente, sempre consistente. Já aqui tinha falado do tomo 1 de Slava, que me tinha impressionado. O tomo dois entrega menos novidade, uma vez que desenvolve o semeado, mas consegue ser ainda mais inteligente e profundo.

Slava perdeu o traço do seu amigo Lavrine, e não teve muito tempo para refletir sobre os motivos do seu desaparecimento, apaixonado pela sua salvadora Nina, e impressionado pela luta da comunidade de mineiros na tentativa de salvar a sua exploração face a Morkhov, o “empresário” vindo de Moscovo que se prepara para comprar a empresa, vender os equipamentos e fechar em definito a atividade. 

Os fios que unem o grupo mineiro começam a dar sinais de fragilidade de que Slava pouco se apercebe, mais ocupado com a sua pintura, com a sua paixão, e com uma sensação de invencibilidade que o verdadeiro “urso” pai de Nina, confere à comunidade. Ciúmes, egoísmos e medo vão acabar por vencer a resistência do grupo que, numa tentativa final recorre ao apoio de outro “homem de negócios” igualmente desonesto e sem escrúpulos: Troubetsköi.

Troubetsköi, o homem que mutilou Lavrine no fim do tomo 1, e que o ameaçou de morte caso se voltassem a cruzar. Grande parte das decisões tomadas nesta história e nas pequenas “histórias” que tenta ilustrar são tudo menos racionais. O rancor e a inveja são forças motoras bem descritas.

Boa parte do tomo 2 é dedicado precisamente a Lavrine, aos seus esquemas, à sua sobrevivência, à sua ascensão, e ao seu reencontro com Slava, nesta Rússia de período Boris Ieltsin, em que tudo vale, e em que todo um modelo económico e social se desagrega.

A narrativa é muito interessante, o detalhes são bem pensados, os diálogos são excelentes, a narração tem a dimensão e o tom adequados, as cores são excelentes, as onomatopeias são imaginativas e distintivas. O desenho é ágil e fácil de acompanhar, um pouco mais elaborado que na BD “Afirma Pereira” que Gomont adaptou e que foi publicado em Portugal.

Claro que depois de dois tomos com mais de 100 páginas cada um, começamos a desejar uma conclusão da história, que se espera possa ser tão imaginativa, intensa e bem-humorada como o que agora temos para ler. Slava, ao não ser um one shot, não assume o mesmo destaque que outras obras, nomeadamente nas nomeações a prémios. Na minha opinião, no entanto, esta série é excelente e será, no seu conjunto, editorialmente marcante.






Le Fils de Pan

Como conseguir comentar esta BD “Le Fils de Pan”, volume de mais de 200 páginas que, para além disso é a continuação de um outro denso volume de 2019 que tinha como título “Le Dieu Vagabond”? Com muito esforço…que vale a pena porque se trata de uma obra de grande qualidade e que me é indicada como estando a vender bastante bem.

Eustis, no primeiro tomo vive num campo de girassóis, é consultado por filas de pessoas, devido às suas capacidades divinatórias, e vimos a descobrir que se trata de um sátiro que se perdeu de Dionisio e da sua trupe de “divinos” foliões (incluindo Pan) e que foi castigado e, por engano, condenado a errar na terra durante séculos. Esta descoberta contribui para a compreensão da inclinação do ainda jovem personagem mitológico pelo vinho.

Neste segundo tomo, depois de no primeiro ter cumprido o pedido das “deusas” de facilitar um encontro com Pan, Eustis vê-se transformado no cuidador do filho de Séléne e de Pan. E, como de costume, com o apoio de uma miríade de personagens secundárias, por vezes mitológicas, interessantíssimas e idiossincráticas, leva-nos num percurso onírico extraordinário, por florestas maravilhosas, subterrâneos ricos de história, tão assustadores como estimulantes, pela cidade moderna, luminosa e perturbante, plena de contradições que o autor não se coíbe de assinalar, aqui e ali! 

O choque entre a magia da antiguidade e a aparente ordem programática da atualidade é divertidíssimo e constitui a base da relação com a filha do professor (por sua vez falecido no primeiro tomo, de que foi personagem tão central que até provou a ambrósia, o néctar dos deuses proibido aos mortais) responsável de organização e reestruturação empresarial, incrédula e à beira de um ataque de nervos. O que lhe vale são as consultas com um psicólogo com face de Freud, meio homem meio cavalo…

A generalidade das personagens mitológicas que vamos encontrando testemunham o seu enorme esforço por se adaptar a um novo estilo de vida, a um novo estatuto, a uma total ausência de notoriedade, razão pela qual algumas, como é o caso de Niké, se encontram à beira de uma depressão. Sempre bem-disposta, otimista e positiva, a narrativa não poupa na crítica social, e nas mostras de uma fértil imaginação na “reciclagem” de personagem da mitologia grega (algumas desapareceram de vez, como é o caso de Zeus, que por isso deixou a “família” desamparada!), mesmo que seja para ver o nosso herói perseguido por um minotauro motorizado em duas rodas.

As páginas que relatam o encontro de Eustis com um famoso pintor do início do século XX são notáveis pela adaptação impressionista do desenho e pela poética abordagem aos acontecimentos. As estruturas narrativas e gráficas, de inspiração variável, mas geralmente reconhecível, vão variando ao serviço de uma história maravilhosa, pouco habitual, nada tradicional, mas que nos enfeitiça.

O tomo 2, “Le Fils de Pan” pode ser lido autonomamente, mas possui uma dimensão de leitura extraordinariamente superior se lida em sequência ao tomo 1. Em qualquer dos tomos, o autor italiano Fabrizio Dori apresenta-nos narrativas verdadeiramente maravilhosas e que constituem uma lufada de ar fresco no panorama editorial de BD. Editado pela Sarbacane em agosto de 2023.


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