terça-feira, 10 de setembro de 2024

A opinião de Miguel Cruz sobre "Inspecteur Balto: Manufrance, Bichons et Camgirls", de Ducoudray e Geffroy e "Where the Body Was", de Brubaker e Philips

 


Inspecteur Balto: Manufrance, Bichons et Camgirls

Esta BD fez já um ano desde que foi editada e foi já lida há uns meses, mas outras publicações levaram a que ficasse sempre preterida nos comentários aqui. Injustamente.

Balto, ao contrário do título, já não é inspetor, uma vez que se reformou, e reconverteu-se em detetive privado. Naturalmente, é um polícia com métodos tradicionais (e frequentemente pouco ortodoxos), sendo que o facto de não estar habituado à internet e não gostar de telefones portáteis (quanto mais de smartphones!) não o perturba muito na generalidade de inquéritos com que tem de lidar. Mas o inquérito que lhe vai surgir desde as primeiras páginas desta BD envolve o desaparecimento de uma camgirl, ou seja, a desaparecida realizava performances de cariz sexual online.

Felizmente o nosso detetive-ex-inspetor é bastante desenrascado, para além de manter alguns contactos que o ajudam. Assim, apesar de alguma dificuldade em avaliar como abordar o inquérito que lhe é apresentado (no bar que lhe serve de escritório) por duas amigas da desaparecida, rapidamente consegue estabelecer uma linha de ação. O inquérito não é fácil, efetivamente, uma vez que isto de procurar pessoas a partir de nomes artísticos tem que se lhe diga!

O caráter antiquado de Balto, a revelação gradual da sua história pessoal, a forma como se relaciona com outras personagens, a sua desadequação nalguns contextos, a convicção com que ultrapassa obstáculos, tudo isto traz novidade a um tratamento clássico de uma história de detetives mais ou menos clássica, mas muito bem imaginada e realizada.

A leitura é agradável, envolvente, as personagens credíveis e de caráter forte, o desenho semi-realista de Damien Geoffroy é cuidado, e tem o condão de dar profundidade a toda a história, bem como de nos transportar para dentro da página.

Sejamos claros: eu não gosto do personagem, tal como caracterizado por Aurélien Ducoudray, e cada revelação sobre a sua vida passada aumenta o meu afastamento. Mas Balto tem carisma, e leva o inquérito “a direito”.

Editado pela Bamboo, não é a novidade do ano… mas vale a pena a leitura.




Where the Body Was

Ed Brubaker e Sean Phillips têm sido uma dupla ganhadora no universo comics, sendo que a edição em português de Criminal ilustra tal facto à perfeição. Ed Brubaker é um mestre na elaboração de imaginativas histórias policiais e Sean Phillips é o seu parceiro ideal “no crime”, com um belíssimo, duro e expressivo desenho.

Where the body Was caiu nas livrarias no início do ano, mas eu só dei pelo corpo do delito muito recentemente, e só mais recentemente ainda chegou ao topo da minha lista de leituras, que isto o tempo não chega para tudo, como se costuma dizer.

Neste comics, a quantidade de personagens de relevo para a investigação do crime é grande – são (mais ou menos) nove - o que permite aos autores (e aos leitores e leitoras) deleitar-se com as páginas dedicadas à análise e exploração dos aspetos relevantes dos antecedentes de várias delas.

Aliás, logo no início são apresentados os retratos dos protagonistas: Desde Tommy Brandt, delinquente juvenil a Jack Foster, detetive privado, passando por Mrs Wilson, a bisbilhoteira local, Lila Nguyen, a miúda dos patins ou o Dr. Ted Melville, psiquiatra dedicado. Para não falar no polícia que só quer que não o “chateiem”. Atenção, são meros exemplos, nada de spoilers. Nas páginas iniciais é ainda apresentado um mapa com a localização de locais de interesse (incluindo o seven/eleven e a pensão, atualmente habitada por drogados) e casa de cada personagem, bem como o local onde foi encontrado o corpo que dá título à obra.

Tudo tem início em finais de junho de 1984, algures na California, tudo se desenrola nos subúrbios de uma desconhecida cidade, e as personagens fazem a sua vida normal – que Brubaker se encarrega de enredar, num interessante exercício de integração de vidas.

O centro da narrativa não é o crime que se verifica na Pelican Road, mas sim o percurso de investigação e a perspetiva de cada personagem sobre os acontecimentos. Porque muitas páginas são, efetivamente, o ponto de vista de diferentes personagens, que vêm a sua vida cruzar-se com a dos outros, numa crítica social e análise de estilos de vida que assume particular relevância. É que a leitura de cada um não é independente da sua experiência de vida e de acontecimentos pessoais, nem é imutável.

Enfim, e pelo meio temos, de facto, o trabalho de descoberta de quem cometeu o crime. 

Interessante, envolvente, curioso, inteligente. Um comic diferente dos anteriores Criminal, Sleeper, Pulp, Reckless, Kill or be Killed…



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