sábado, 19 de outubro de 2024

A opinião de Miguel Cruz sobre "La Querelle des Arbres", de Asumard e Farece e "Le Petit Pape Pie 3,14", de Boucq

 


La Querelle des Arbres

La Querelle des Arbres é uma longa viagem a uma Indochina colonizada e ao choque de culturas entre colonizadores e colonizados, com as árvores históricas a ter um papel essencial.

Estamos em 1920 e acompanhamos a chegada de Settimo, um lenhador especialista, de nacionalidade corsa, fisicamente impressionante, a uma pequena vila, a caminho de uma plantação onde vai trabalhar, e que se situa nas bordas do rio Mékong. A sua bagagem emocional e o seu passado fazem desta personagem com contradições uma peça central de uma guerra surda de poder.

Assim que chega, a nossa personagem central é abordada pela polícia local e chantageado no sentido de poder investigar e passar informação que possa contribuir para uma investigação em curso sobre a identidade de um independentista que escreve textos de apelo e mobilização à população. O encontro de Settimo com o jovem Chân Ly é o elemento central de toda a narrativa. É através deste encontro que Settimo vai começando a perder os seus preconceitos, e a desenvolver uma relação diferente com as árvores e com o seu métier, como forma que os autores encontraram para abordar o choque de culturas e a tensão entre colonizadores e colonizados.

A desconstrução das formas de poder através da resistência, a dualidade das personagens, a amizade, a abordagem aos temas ambientais e da relação do homem com a natureza, tudo isso é tratado de forma poética numa BD intensa que, naturalmente, nos aporta muitos desgostos e tristezas, num crescendo de intensidade e tensão, em que até o grau de humidade nos é palpável.

A argumentista Almaya Asumard, que me era perfeitamente desconhecida, apresenta aqui uma sua primeira BD consistente e muito bem construída, sensível e que deixa uma grande liberdade emocional aos seus leitores. Renaud Farace, o desenhador, apresenta-nos um trabalho gráfico excelente, com uma excepcional representação de um ambiente difícil, belo, por vezes opressivo. No conjunto, uma BD sincera, aparentemente simples, mas de grande profundidade e qualidade.  Editado pela Casterman.




Le Petit Pape Pie 3,14

François Boucq é um autor bem conhecido em Portugal, que, pela sua simpatia, disponibilidade e boa disposição é, naturalmente, apreciado. É-o, claro porque também o seu trabalho… direi o seu extraordinário, vasto e excecional trabalho, o classifica como um dos incontornáveis da BD.

Detentor de um sentido de humor muito crítico, François Boucq já produziu algumas BD bem conhecidas de humor muito extravagante, com personagens bizarras em ambientes tresloucados, como Jérôme Moucherot ou Super Dupont. 

Publicado pela Fluide Glaciale, já aqui tinha falado do soberbo tomo 1 das aventuras do Pequeno Papa Pio 3,14, tão pequeno que aquando da sua apresentação pós eleição no Conclave, precisou de algum apoio para conseguir aparecer acima da varanda. Com o sucesso deste primeiro tomo, Boucq apresenta-nos um segundo deste agradável e divertido personagem, que serve também para o autor, com bonomia, nos apresentar algumas análises sociais particularmente críticas e, no essencial alguns comentários sobre o estado do mundo.

Do ponto de vista gráfico, voltamos a estar perante uma realização extraordinária. Boucq é Boucq, e o que nos apresenta regularmente até parece fácil de fazer. Extraordinário, um desenho sóbrio e agradável para uma BD hilariante e estranhamente parva…

A terra parece estar a mudar de forma e a convergir para o formato cúbico, e há vários acontecimentos que vêm demonstrar que o problema é profundo. Felizmente Pio 3,14, sendo pequeno, é um ser virado para a ação, mesmo sendo por vezes necessário realizar viagens estranhas e incutir nos seus cardeais uma agressividade e dinamismo nunca vistos.

Divertidamente irracional, profundo com toques de leveza, esta é uma BD que recomendo claramente, por constituir uma lufada de ar fresco no panorama tradicional da BD. Não considero este tomo tão bom quanto o primeiro, talvez porque esse consumiu o elemento de surpresa, mas como após a leitura da “aventura inicial” a vontade de passar mais tempo com Pio 3,14 foi notória, foi com agrado quer reencontrei este amigo.

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