domingo, 6 de outubro de 2024

A opinião de Miguel Cruz sobre "Loin", de Jaraba e "Interlude", de Pieters e Ducaju

 



Loin

Longe não é uma BD sobre distância física, embora sejam grandes as distâncias percorridas neste álbum. Aimée e Ulysse são um casal jovem (na casa dos trinta, parece-me), que partem de férias na sua carrinha, preparados para um longo percurso até ao Sul de Espanha, e com um objetivo bem definido: aulas de mergulho (e, já, agora, ver um peixe-lua). 

A bagagem que levam com eles é pesadíssima: Aimée e Ulysse não estão a ter a mesma conceção e objetivos de vida. Aimée tem medo de mergulhar, da desorganização, de dormir ao relento, de lidar com desconhecidos, enfim, de tudo o que não consegue controlar. Ulysse tem a obsessão do mergulho, procura novos caminhos, e uma espontaneidade que lhe faz falta. Ambos estão também numa fase crucial quanto aos seus futuros profissionais, que podem implicar mudanças geográficas importantes. Decisões, decisões!

A viagem não corre, desde o início, como planeado, aliás, creio que seria mais correto dizer que tudo acontece ao contrário do planeado. Desde logo a carrinha avaria, a reparação demora tempo, as reservas no parque de campismo apresentam problemas, enfim, é “tudo ao lado” o que leva a reações completamente díspares dos dois membros do casal, bem como espoleta encontros que vão mudar a vida de ambos. Uma viagem prevista como uma evasão, culmina numa introspeção com implicações para a vida em conjunto. E há decisões a serem tomadas com urgência, tic tac, tic tac.

Nada nesta BD corre de acordo com o planeado e pouco corresponde às nossas expectativas. É imprevisível, portanto, surpreendente, mas movimentado, sempre bem-disposto, emocional e sensível. Este é o resumo deste trabalho da espanhola Alicia Jaraba, que me referiu viver na Galiza, o que tornou a conversa mais fluída, uma vez que eu não hablo lá muito bem.

O desenho em tons pasteis, sempre muito luminoso, agradável, expressivo, privilegiando o movimento, é excelente, na linha do que eu já conhecia da autora do seu anterior trabalho Celle qui parle, de 2022, que eu tinha apreciado bastante e aqui relatado. Entretanto a autora teve a sua criança, referência que aliás se encontra nos agradecimentos.

Uma leitura agradável, esta BD editada pela Bamboo, na sua conceituada coleção Grand Angle. A capa é interessante: a angústia da decisão, a carrinha, as costas voltadas, a máscara de mergulho, a bússola e o mapa. A recomendação é merecida.



Interlude

Foi uma aquisição inesperada e não planeada de uma BD inesperada e surpreendente, de duas jovens, Céline Pieters no argumento e Célia Ducaju no desenho e cores.

Interlúdio é uma história muito bem contada da descida de um piano, lançado de um avião de reabastecimento sobre a zona de Liége, numa altura em que todos desesperam pelo final da segunda guerra mundial, mas que não há meio de chegar.

O piano, um Victory Vertical, da Steinway, como fiquei a saber, é uma entrega inesperada que tem um efeito notável sobre a disposição e moral de um conjunto de homens cansados de andar a arrastar-se em escaramuças com os alemães, num contexto climatérico particularmente desagradável.

São cerca de 90 páginas baseadas numa história verídica (há detalhes no final da BD), em que se relata o destino deste piano e dos homens que nele encontram conforto, durante um espaço muito curto de tempo. Ficamos a saber que houve mais de dois mil pianos fornecidos pelo exército americano às suas tropas, para levantar a moral, fomentar o espírito de grupo e fortalecer o patriotismo.

Toda a narrativa é crua, o horror dos combates e aspetos mais desagradáveis da natureza humana estão sempre presentes, mesmo nos comportamentos dos próprios aliados e dos soldados americanos. Ninguém sai muito bem desta história, embora uns piores que outros. No entanto, as autoras conseguem passar uma mensagem positiva, quase de uma ilha criada em torno deste piano, para a qual aqueles homens se conseguem por momentos transportar e afastar do horror que os rodeia.

É quase uma fábula de esperança, uma abordagem ao papel da arte na natureza humana, uma discorrência sobre o impacto da moral e da motivação para o alcançar de objetivos, para a “last mile” que falta percorrer. É uma abordagem poética, mas dura, sobre a aspiração a ser melhor.

As emoções são bem retratadas. O momento em que o sargento Brown se recusa a obedecer a ordens diretas e a abandonar o piano, é palpável como o momento crítico desta narrativa.

O desenho é bem cuidado e digno de referência para o que, se percebi bem, constitui um primeiro trabalho. Boas expressões, cores elegantes, excelente ritmo de narração, clareza nas situações. Editado pela Dargaud, uma (quase) pequena BD que nos surpreende positivamente. Allez.



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