sexta-feira, 17 de janeiro de 2025

A opinião de Miguel Cruz sobre "Slava Tome 3 - Un enfer pour un autre", de Gomont e "Retour à Lemberg", de Picaud, Camus e Sands

 


Slava Tome 3 - Un enfer pour un autre

Já tinha tido a oportunidade de dar a minha opinião sobre a série Slava de Pierre Henri Gomont, quer para o seu tomo 1, quer para o seu tomo 2. Esta série teve dois primeiros tomos muito bons, sendo que o autor conseguiu terminar a aventura mantendo a elevada qualidade da primeira á última página.

Começando ao contrário do habitual, uma palavra para a edição cuidada por parte da Dargaud: Dá gosto! (ok, duas palavras).

Continuamos a acompanhar, no contexto da confusão criada pela queda da União Soviética, o sonhador, mas pouco prático Slava, o desembaraçado e sem escrúpulos Lavrine, a adorável, corajosa e dura Nina, bem como o conjunto de Mineiros coordenados pelo imponente e resistente – mas cada vez menos – Volodia, pai de Nina. 

No “episódio anterior” Lavrine e Slava apresentam “divergências insanáveis” e Lavrine desaparece, perseguido por “mafiosos convictos” (obrigado aos GNR pela expressão), que o castigam. Mas Lavrine é um dotado para os negócios escuros e encontramo-lo rico, muito rico, mas insatisfeito pela sua falta de amigos e ausência de relações pessoais relevantes.

Nina e Slava, agora também ligados pelo anúncio de chegada de uma filha, vão fazendo o que podem para sustentar o seu grupo de mineiros, e para tentar encontrar uma solução que resolva a situação da sua região, cada vez mais deprimida, cada vez mais explorada por ricos “capitalistas” que vão desmantelando a produção.

Com o desenlace da história destes personagens, vamos acompanhando a evolução da situação na Rússia, e o desenvolvimento de uma economia “sem rei nem roque” em que alguns singram, a grande maioria sobrevive, e muitos não se encontram por falta de referências e uma incapacidade de se adaptar às novas referências, maneiras de ser e formas de pensar. Volodia é um excelente representante deste último grupo o que, naturalmente, não lhe augura grande futuro. Na capatemos: Volodia, Slava e Lavrine.

Um desenho elegante, nervoso, uma composição de página variada, sempre competente, o todo virado para o movimento e para a tradução do sentimento das personagens. Cenários que, mesmo sem o saber, reconhecemos como “soviéticos”, seja na estepe, interiores ostensivamente luxuosos, espaços fabris sujos e délabrés. Uma distribuição de cor atraente, tornando as páginas sempre luminosas, destacando o cerne da ação. Diálogos ricos, enérgicos e marcantes, com um vocabulário extenso, apoiados por onomatopeias em cirílico de uma clareza inaudita. Uma obra INDISPENSÁVEL, um romance profundo e humanista.





Retour à Lemberg

Adquirido juntamente com “Deux Filles Nues”, este Retour à Lemberg constitui um documentário de grande qualidade, que narra uma história familiar muito bem estruturada e cativante. As duas aquisições têm em comum – para além de excelentes BD, o facto de se debruçarem essencialmente (ambos acabam por ir até aos dias de hoje), sobre o período que vai essencialmente desde um pouco antes da subida dos nazis ao poder até ao final de II Guerra Mundial. 

Um “calhamaço” de mais de 270 páginas com um desenho a preto e branco realista, muito elegante, bem documentado, um trabalho notável de Christophe Picaud. O argumentista Jean-Christophe Camus baseou-se na investigação de Philippe Sands para, de forma muito atrativa, organizada e interessante, acompanhar um conjunto de personagens cujas histórias de vida (e de morte) se cruzam, sem que se tenham efetivamente – na generalidade dos casos cruzado. Um avô de origem judaica que emigrou para França antes do início da guerra, a quem se juntou mais tarde a filha e só bastante mais tarde a esposa, em circunstâncias estranhas e não esclarecidas. Dois advogados em tudo muito diferentes, incluindo na abordagem ao direito e, particularmente, com visões diferentes de como assegurar o julgamento dos criminosos nazis – um com uma abordagem baseada no indivíduo e outro com uma abordagem associada ao massacre de grupo – genocídio, sendo que ambos acabam por desempenhar um papel importante no desenrolar do processo de Nuremberga: Hersh Lauterpacht e Raphael Lemkin. Todos eles judeus, todos eles com famílias apanhadas na deportação de judeus para o leste, todos eles com raízes em Lemberg, hoje Lviv, na Ucrânia.

Várias personagens que se cruzaram com Léon, o avô que se recusava a falar do período da guerra e das dificuldades do passado, obrigando o narrador a procurar pistas, contactar familiares, conhecidos, num processo longo de anos, que vamos acompanhando com curiosidade, participando das surpresas e descobertas. Acompanhamos também, com acesso a muita informação, a génese, as dificuldades e o desenrolar do processo ou julgamento dos criminosos de guerra de Nuremberga, a grande maioria dos quais, como sabemos, foi condenada e executada (Goering suicidou-se antes da execução da pena). Um desses criminosos de guerra, é personagem relevante no desenrolar da narrativa: Hans Frank, governador da Polónia, um dos primeiros apoiantes de Hitler, e também ele advogado.

Uma BD marcante, de grande qualidade narrativa, historicamente detalhada, com discussões sobre o desenho do atual direito internacional, e sobre personagens todas elas reais, todas elas com percursos de vida significativos – nem sempre pela positiva. Editado pela Delcourt.



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