sexta-feira, 15 de julho de 2022

As opiniões de Miguel Cruz sobre: "Celle qui Parle", de Alicia Jaraba e "En Fuite!", de Lelis

Aqui ficam as duas opiniões de Miguel Cruz sobre:



Celle qui Parle

Esta Banda Desenhada relata-nos a história de Malinalli (ou Malinche, ou Marina ou Malintzin consoante os dialetos/línguas), nobre filha de um chefe, já desaparecido, da aldeia de Oluta, no México do início do século XVI.

Nesse período, várias tribos/vários povos repartem o território, entre os quais os Mexicas (também conhecidos sob o nome de Aztecas) e, mais a leste, na hoje conhecida como península de Yucatan, os Mayas. 

Todos estes povos têm hábitos, culturas, divindades e línguas diferentes. Muitos destes povos não apreciam os seus vizinhos, mas praticamente todos temem o poderio e expansão territorial dos Mexicas, que cada vez mais alargam o seu território de influência, bem como a sua exigência de recursos naturais, de escravos e, particularmente, de escravos destinados ao sacrifício ritual. As aldeias, cada vez mais se vêm privadas das suas culturas, e da mão de obra para as renovar e para caçar.

A adolescente Malinalli acaba por ser entregue pelo chefe da sua aldeia a mercadores de escravos e levada como tal para território Maya. Aí a sua sobrevivência acaba por depender da sua capacidade de aprender a língua local, acabando por se tornar (uma de várias) concubina do cacique da cidade de Potochan. A sua inteligência, rebeldia e capacidade de aprendizagem, acabam por a tornar uma personagem de destaque. 

Em 1519, vários navios surgem no horizonte, transportando homens brancos vestidos de forma estranha, com proteções pesadas de metal, com cavalos, armas novas e perigosas, poucos hábitos de higiene, um único Deus, e uma língua desconhecida: o castelhano.

Malinalli e 19 outras escravas são entregues como presente aos Espanhóis liderados pelo Capitão Hernán Cortés. Com a ajuda de uma ruiva espanhola – Maria – e de Jerónimo, um espanhol que esteve cativo durante oito anos em território Maya, Malinalli acaba por aprender o Castelhano e tornar-se interprete ao serviço dos Espanhóis – aquela que fala.

As suas capacidades linguísticas, conhecimento de diferentes dialetos, mas também a sua capacidade empática e a inteligência estratégica, acabam por a tornar essencial para todas as negociações e para a progressão espanhola em território do México. Mas tornam-na também numa figura controversa, enquanto óbvia colaboradora com o inimigo. 

A base histórica é real, embora toda a sequência narrativa seja obviamente romanceada, muito na perspetiva da relação entre as mulheres, conhecedoras da natureza, escravas e vítimas de abuso. Não se trata, pois, de qualquer narrativa histórica, antes uma apresentação da complexidade de relações humanas, de choques culturais, e do impacto da invasão espanhola nas dinâmicas territoriais da época.

A autora, a espanhola Alicia Jaraba Abellán apresenta-nos esta história, com passagens trágicas e difíceis, pontuadas de um humor que sustenta bem as mais de 200 páginas de pranchas de cores quentes, de leitura fácil, apesar de conterem muitos acontecimentos, muita ação, um desenho quase realista, muito bom, adequado à história, com muita expressividade nas personagens e detalhe na caracterização dos espaços e do ambiente.

Uma excelente BD, que recomendo sem hesitações, uma aposta bem conseguida da editora francesa Bamboo, e que seria tão bom vermos editado em Portugal.




En Fuite!

O Brasileiro Marcello Eduardo Lelis de Oliveira (Lelis), que era para mim um desconhecido no universo da Banda Desenhada, publicou no início do ano, através da editora Les Rêveurs (Os Sonhadores), uma belíssima Banda Desenhada, da sua exclusiva autoria. Publicada em francês, e com o título de En Fuite! (Em Fuga!), passou-me pelas mãos por mero acaso, um pouco tardiamente face à data da sua publicação, mas ainda a tempo… Mais vale tarde que nunca, ouço dizer.

Comecemos pelos desenhos, curiosos, com cores realizadas a aguarela, neste caso com os tons ocres a dominar belas páginas, com um desenho sonhador, a maioria das vezes com muitos detalhes, traços grossos, e uma grande lisibilidade. Tem momentos em que me faz lembrar o desenho (e as cores) de Nicolas de Crécy, outros em que me recorda o desenho de Tiburce Oger nas suas primeiras obras. É bonito, agradável, sonhador…

Passemos ao texto: Não há! Esta BD de 80 páginas é “muda” e, apesar de os desenhos sustentarem facilmente e muito bem a história, lê-se rapidamente e com agrado. Convém, no entanto, chamar a atenção para a necessidade de ler/observar cada vinheta com detalhe. Cada re-leitura permite descobrir “pequenas coisas” aparentemente sem importância.

Dois funcionários camarários, um deles magro e seco e o outro, na versão obelixiana, um pouco forte, perseguem um cão, enérgico e bem-disposto. A perseguição é longa, o percurso não é linear e, ao longo deste, vários encontros/cruzamentos vão acontecendo. Dois fugitivos da prisão são, tal como o canídeo, perseguidos pelas ruas da vila/aldeia (??). Uma senhora mais idosa procura o seu gato, e percorre as mesmas ruas na sua bicicleta. Já o seu gato fez um encontro mais perigoso com vários “primos” do nosso cãoprimeiro. 

Estes são apenas dois exemplos de diversos “cruzamentos” que o trio perseguido-perseguidores apresenta aos nossos olhos, permitindo a construção gradual de uma teia narrativa de sub-histórias diversas a que nos vamos agarrando com prazer e curiosidade. É agradável, bem disposta, movimentada e várias vezes supreendente. Uma BD que se recomenda, particularmente agora que o calor começa a apertar, de um autor falante da nossa língua.

2 comentários:

  1. Fiquei com vontade de ver e ler Celle qui parle. Em fui-te também, mas talvez menos. A primeira, pelo contexto, deve oferecer muita variedade de situações. A segunda, sem texto, deve ser curioso é divertido descobrir o enredo nesse contexto.

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