quarta-feira, 6 de setembro de 2023

A opinião de Miguel Cruz sobre: "La Mort n’est pas une fin", de Despujol e Boitier e "Contrition", de Portela e KEKO

 


La Mort n’est pas une fin

« Acabadinha » de sair, esta BD é, apriori, mais uma de muitas adaptações dos romances de Agatha Christie, normalmente nem boas nem más, antes pelo contrário… No entanto, esta obra apresenta algumas características distintivas que nos atraem – pelo menos a mim, certamente!

Desde logo, a adaptação é da única obra da escritora inglesa que não é passada no século XX, no período pós-Vitoriano. Não estamos perante um mistério investigado por Poirot, nem perante uma situação intrincada a ser desvendada por Miss Marple, nem sequer perante uma aventura entusiasmante de Tommy e Tuppence. Esta aventura/mistério é passada no antigo Egipto, como bem o ilustra a interessante capa.

Já os ingredientes são muito semelhantes: crime, envenenamento, raiva, inveja, ciúmes, traição. Muito agradável, uma história que nos suscita curiosidade e cuja leitura se faz com satisfação.

Talvez por sairmos de caminhos mais conhecidos e habituais, quando li esta história fiquei com uma sensação de maior densidade do que habitualmente no tratamento quer da trama quer das personagens, seja na história, seja no desenho. Isso é muito bom, é o que se pretende, não apenas conhecer as linhas gerais de uma narrativa, mas poder conhecer por dentro as motivações das personagens, reconhecer como convincentes as suas ações e comportamentos. Todos sabemos que as adaptações literárias são por vezes “despachadas” sem a necessária cautela do tratamento do ambiente da obra, o que por vezes resulta bem, mas muitas vezes nem por isso…

O desenho de Emmanuel Despujol, excelente sucessor de Jacques Lamontagne na série Aspic, é naturalmente clássico, mas extremamente atraente, com cores vivas e uma boa caracterização gráfica das personagens, bem distintas em rostos e maneira de ser. Isabelle Boitier, novamente a trabalhar as obras da escritora inglesa, depois de Morte no Nilo/O Misterioso Caso Styles, dá profundidade à narrativa e “desenrasca-se” muito bem ao longo de 62 páginas, sem lacunas narrativas visíveis.

Por isso, a leitura recomenda-se sendo que, como refiro noutra análise para a mais recente adaptação de Simenon, não estamos perante uma obra revolucionária ou particularmente inovadora. Estamos, porém, perante um bom momento de leitura, em que somos permanentemente convidados a tentar tirar as nossas conclusões e a tentar descobrir a verdade. E, além disso, como sabem, a justiça, nas obras da Agatha Christie, triunfa sempre, mesmo que, reconfortantemente, possa ter de ser ocasionalmente apenas a justiça poética. Da Editora Paquet.







Contrition

Keko é um autor já bastante bem conhecido em Portugal devido, essencialmente ao seu trabalho com António Altarriba, para além das suas simpáticas presenças quer em Beja, quer na Amadora. 

Agora com o também espanhol Carlos Portela a assumir o argumento, Keko apresenta-nos um trabalho de grande fôlego em Contrition, um one shot a preto e branco com mais de 140 páginas. Contrition é o nome fictício de uma localidade nos Estados Unidos onde se estabelecem pessoas acusadas de crimes sexuais, nomeadamente pedofilia.

Um acusado de pedofilia, Christian Nowak, morreu num incêndio na sua casa, ninguém se mostrou muito preocupado, procedeu-se ao seu enterro, caso arrumado. Mas uma jovem jornalista, a quem é facilitado o acesso a informação sobre a cena do crime, estranha alguns aspetos do caso e acaba por investigar a situação, sendo descoberto (o que contraria alguns agentes da autoridade!) que o cadáver é de um outro habitante, falecido anteriormente. 

Para além de um pedófilo em fuga, vimos ainda a descobrir que um outro habitante de Contrition facilitou a fuga de Nowak e desapareceu por sua vez. Este outro habitante, além de um ilustre desconhecido de que pouco se sabe, de quem ninguém conhece o passado e de quem é difícil encontrar uma fotografia, é um ser raro, uma vez que a sua presença em Contrition é voluntária. 

Nesta BD acompanhamos a jovem jornalista Martha, a sua tentativa de descobrir a verdade e os problemas pessoais e profissionais que tal lhe causa, acompanhamos os fugitivos, a sua relação e motivações, mas essencialmente acompanhamos uma discussão sobre a situação destes condenados, marcados e “guetizados”, bem como sobre arrependimento e contrição. 

Trata-se de um thriller inteligente, bem estruturado, com um desenho de grande qualidade. Não constitui uma leitura fácil ou ligeira, mas vale a leitura e a reflexão, prende-nos a atenção, sem nunca ser desagradável. Muitos jogos de palavras nesta BD bem conseguida sobre segundas oportunidades, editada pela Denoel Graphics.




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