sábado, 9 de setembro de 2023

A opinião de Miguel Cruz sobre: "Le Passager du Polarys", de Cailleaux e Bocquet e "L’Héritage Wagner", de Zuiden e Desberg

 


Le Passager du Polarys

Le Passager du Polarys é uma excelente BD adaptada de um romance de mistério, talvez dos menos conhecidos, de Georges Simenon – o bem conhecido autor belga das “aventuras” do Comissário Maigret. 

José-Louis Bocquet, também argumentista do recente Blake e Mortimer “Oito Horas em Berlim”, assume as rédeas da adaptação desta estranha aventura e denso mistério, imaginada por Simenon. Tudo começa com a partida de um cargueiro, o Polarys, para uma viagem de cabotagem ao longo da Costa Norueguesa. O frio é grande, as escalas poucas e reduzidas no tempo, o que transforma um aparentemente banal, embora estranho, caso de “clandestino a bordo” num mistério denso e complexo envolvendo um número limitado de personagens/passageiros e a descoberta de algumas relações entre eles, narrado essencialmente pelo capitão do navio. Somos enganados, ou conduzidos no caminho errado, com frequência, induzidos em juízos de valor frequentemente simplistas, e sempre mantidos com a atenção focada no aprofundamento e “desconstrução” das personagens.

Christian Cailleaux, que este ano já vira publicado um outro álbum, “La Fleche Ardente” – continuação de “Le Rayon U”, apresenta-nos aqui um desenho excecional, com cores mortiças, muito adaptadas à viagem do Polarys, e da autoria do próprio desenhador.

Quem é o passageiro clandestino? Por onde se movimenta e o que pretende? O que se esconde por detrás do comportamento do estranho segundo-comandante? Quem roubou o dinheiro das cabines? O que justifica os comportamentos bizarros (mesmo neste contexto de elegância muito própria dos anos 30) de alguns passageiros (e passageira)? Qual a relação desta história marítima com a morte recente e por overdose de uma tal de Marie Baron? Quem é o passageiro que dá nome a esta BD?

Para descobrirem as respostas a estas e outras questões, as leitoras e os leitores terão de se dedicar a esta interessante história, com uma narrativa fluída e muita elegância na representação gráfica, bem como com diálogos interessantes e por vezes agradavelmente desconcertantes. Pode não ser uma obra revolucionária, mas uma coisa é certa: esta é, até ao momento, e na minha opinião, uma das BD do ano. Editado pela Dargaud.



L’Héritage Wagner

Correndo o risco de prejudicar a leitura do meu restante comentário, importa reconhecer que esta não foi das minhas apostas mais bem conseguidas, tendo ficado aquém da promessa e potencial da história anunciada, do título apresentado e da excelente capa preparada para nos atrair. E, no entanto, os pontos positivos são vários. Para além da já mencionada capa, tenho de começar pelo extraordinário desenho do belga Emilio VanDer Zuiden, num topo de forma. Bonito, elegante, muito seguro, próximo de uma linha clara, com uma capacidade de variar planos, adaptar técnica e de nos entregar uma estrutura de página atraente, fácil de entender, cinematográfico na sequência e ao mesmo tempo adequadamente teatral nas atitudes. 

Para quem não se recorde, Van Der Zuiden foi editado em Portugal com uma adaptação de Agatha Christie – Os Beresford. Para mim, este desenhador será sempre associado a uma excelente série denominada McQueen.

Depois, temos as cores de Jack Manini, que nos entregam o ambiente perfeito para esta narrativa feita de tensões e para os momentos teatrais que o atravessam. Diria mesmo mais: caracterização perfeita de tom e ambiente. Jack Manini é um autor de méritos firmados através de diversos álbuns de qualidade já publicados em França/Bélgica, e que participou em Go West Young Man, recentemente editado em Portugal. Por esse motivo fiquei um pouco surpreendido por o ver como colorista de L’Héritage Wagner mas, atendendo aos resultados, muito satisfeito.

Temos ainda a considerar a qualidade e profundidade de caracterização de um universo muito específico e elitista que é o operático alemão associado ao festival de Beyreuth, fundado em 1876 por Richard Wagner.

Infelizmente, a narrativa, embora interessante, fica um pouco aquém do potencial. Trata-se de uma história de confronto entre tentativas de modernização de um festival cultural e uma atitude conservadora e tradicionalista e pouca vontade (de alguns) de fazer alterações a um “saudoso passado”. Passado no século XX, incluindo variações de períodos temporais por vezes complexas, trata-se de um retrato do dia a dia e peripécias e invejas associadas ao festival, deixando muitas matérias ideológicas, de choques culturais e de clarificação da relação passada com o nazismo para um plano pouco desenvolvido. É pena, queríamos mais.

No entanto, o tratamento dos bastidores, a reconstituição cultural e a experiência em nos prender numa narrativa do veterano Stephen Desberg (I.R.$, Billy the Cat, etc.) permite-nos uma leitura interessante. Editado pela Bamboo, este one shot, tem uma relação com dois outros álbuns dos mesmos autores: Les Anges d’Auschwitz e Aimer pour Deux (no período da ocupação alemã de França).



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