terça-feira, 3 de dezembro de 2024

A opinião de Miguel Cruz sobre "L’Intranquille Monsieur Pessoa", de Barral e "G.I. Gay", de Alcante e Bernardo Muñoz

 


L’Intranquille Monsieur Pessoa

Enquanto aguardamos a publicação em português pela Levoir desta obra de Nicolas Barral, aqui fica um breve comentário da leitura em francês (edição Dargaud).

Tal como já tinha acontecido com um livro anterior “Um Ar de Fado”, o desenho de Nicolas Barral é irrepreensível, cuidado, e notável ao nível de sequência narrativa e composição de página. Além disso, o desenho das ruas de Lisboa constitui quase razão suficiente para ficarmos presos à leitura.

Fernando Pessoa vai morrer, e sabe-o. Acompanhamos os últimos dias do Poeta com detalhe, resignação, bonomia, paz interior, uma vontade de deixar “trabalho meticulosamente acabado”, mas um grande conflito com os seus heterónimos (a forma encontrada para abordar este tema dos heterónimos de Fernando Pessoa, com diferentes personalidades e biografia detalhada é muito curiosa e elegante). Ao mesmo tempo, somos presenteados com alguns flash backs “familiares” do poeta, num todo romanceado com particular sensibilidade e, parece-me evidente, uma grande admiração por Fernando Pessoa e pela sua obra. Uma alma diferente.

Em paralelo, e permitindo uma visão global da personagem, da sua vida, da sua obra, do seu intelecto e da sua sensibilidade, acompanhamos a tarefa de Simão Cerdeira, o jovem que terá de produzir o obituário do Poeta para o Diário de Lisboa. Mais um que estranha o personagem, mas que acaba por se tornar um admirador. Ao fim ao cabo, quem, conhecendo o poeta – e ele já se tornou uma personagem conhecida de Lisboa e dos meios literários – não é por ele profunda e respeitosamente fascinado? Mas o poeta é um homem, figura frágil, tímida e criativa, a quem o abuso de álcool não vai poupar. 

Muito bom! Da Dargaud, merece o destaque e será, com naturalidade um dos livros do ano e, certamente, um dos que dirá mais à leitora e ao leitor português. Esperemos que a edição na nossa língua, na língua de pessoa, seja muito cuidada. Curiosamente, não o posso deixar de dizer, como admirador Pessoano que sou – não o somos todos? – não consegui evitar uma tristeza enorme com o relato do desaparecimento – demasiado cedo, aos 47 anos – deste notável personagem de Lisboa. Sinal da profundidade de tratamento de Nicolas Barral que, verdadeiramente, nos transporta para a realidade de 1935.



G.I. Gay

Esta BD, publicada pela Dupuis na coleção Aire Libre, vem relatar, com detalhe, o tratamento razoavelmente desconhecido dos soldados ou recrutas homossexuais do exército americano na preparação e durante a segunda Guerra Mundial.

A narrativa tem o seu início após o ataque japonês a Pearl Harbor, em que o jovem psiquiatra Alan Cole, apesar de dispensado da atividade militar e de uma vida pessoal folgada e romanticamente preenchida, acaba por se voluntariar para o exército e vai fazer parte da equipa de triagem dos recrutas, sendo que uma das instruções que recebe de imediato é de que candidatos homossexuais têm de ser identificados e excluídos.

Cole vai ter um contacto difícil com uma realidade que lhe era desconhecida e que lhe causa incompreensão e sentimentos de injustiça. Mais tarde vai acompanhar os “seus” recrutas para a fase de combate, e a relação que estabeleceu com um grupo de jovens vai perturbar em muito a sua vida, a sua maneira de ser e de ver o mundo, e levá-lo a questionar as suas preferências sexuais. 

Apesar de se ter alistado por pressão de e para impressionar o seu sogro, o rompimento com a sua noiva acaba por ser inevitável, apesar de esta esperar um filho seu. Toda a história é realista, as emoções são intensas e diversas ao longo da BD, e se é verdade que na primeira parte do livro, numa fase de descoberta, o tratamento é cuidado, sem excessos nem muitos juízos de valor, na segunda parte a denúncia é violenta.

As purgas no seio do exército são detalhadas nesta obra de Alcante e de Bernardo Muñoz, o primeiro, argumentista belga bem conhecido e de que há pouco tempo lemos “A Bomba” publicada pela Gradiva, e o segundo embora desconhecido para mim, é detentor de um desenho realista elegante e com caráter, com um aspeto “vintage”, mas muita expressividade de rostos e gestos, e dono de uma capacidade narrativa muito interessante, particularmente num tema que não é fácil de tratar.

No passado mês de junho li, algures, que o Presidente Biden homenageou todos os soldados americanos que tiveram problemas em função da sua orientação sexual. Tudo indica, portanto, que este relato histórico encontrou a sua janela de oportunidade.



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