domingo, 1 de maio de 2022

As opiniões de Miguel Cruz sobre: "Bug - Livre 3", de Enki Bilal; "Volage - Chronique des Enfers", de Desberg e Tony Sandoval, e "Ce que nous sommes", de ZEP


Hoje aqui ficam três sugestões e opiniões de leituras de Miguel Cruz, bem como a capa e uma prancha para "matar" a curiosidade de cada livro. Bom domingo!


BUG – Livre 3

A  Arte de Autor já tinha editado em Português, em período pré-pandemia, os dois primeiros tomos da série BUG da autoria de Enki Bilal, um daqueles autores que, na minha opinião, consegue ter um “planeta próprio” no vasto Universo da Banda Desenhada. E não é um planeta pequeno.

Foi recentemente editado em francês o Livro 3, que continua a seguir o evoluir da situação mundial de absoluto caos, causada pelo desaparecimento absoluto do “mundo digital”, de todos os documentos, de todos os códigos, passwords, etc. Situação tanto mais grave quanto, uma vez que estamos num futuro não muito longínquo, muita da “elite” dirigente mundial exibe dependências de transplantes tecnológicos para melhoria de performance física e mental que, de um dia para o outro deixaram de funcionar fragilizando-os.

Continuamos, também, a acompanhar a odisseia de Kameron Odd (e também de alguns seus próximos, nomeadamente a sua filha) que, sem que tal tenha sido sua vontade, se constitui como o recetáculo de toda a informação perdida. Embora Odd, sob o efeito de BUG, detenha toda a informação, se vá gradualmente colorindo de azul, e seja procurado/cobiçado por todos aqueles que tentam conquistar a sua posição na ordem mundial, as suas aventuras constituem apenas uma base para Bilal ir ilustrando o que se vai passando neste mundo novo.

Os integrismos políticos e religiosos vão aparecendo, o papel dos mais idosos, menos dependentes da tecnologia e com capacidades relevantes neste contexto, a dependência tecnológica dos mais novos, e os efeitos psicológicos desta situação, a ascensão das mulheres às lideranças inorgânicas e políticas, as tomadas de poder e lutas internas, a conquista de território da vegetação e da natureza, os cultos de personalidade, a ascensão de África, menos evoluída tecnologicamente e, portanto, geo-estrategicamente melhor posicionada, tudo isto é cautelosamente exposto por Enki Bilal, de uma forma credível, detalhada e consistente.

Com um desenho muito particular, excecional (as personagens, apesar do excecional desenho, por vezes surgem um pouco rígidas, sem que isso perturbe o ritmo narrativo) e por vezes de pesadelo, Enki Bilal apresenta, com páginas/pranchas de poucas vinhetas (não é inabitual ter apenas duas), uma crítica social muito interessante e uma reflexão credível e merecedora de atenção. É curioso ver que a preocupação de partida de Enki Bilal tem uma ligação clara com a que Zep mostrou em “Ce que nous Sommes” e de que já aqui falei. A profundidade de tratamento da história, o desenvolvimento das tramas, a abrangência social e os detalhes, esses, são completamente distintos. 

Com este terceiro tomo, apesar de momentos muito interessantes e do prazer em percorrer estes desenhos, a história começa a arrastar-se, alguns pormenores começam a tornar-se difíceis de acompanhar pela complexidade da trama, e pelas novidades constantes, o que prejudica claramente a qualidade da série. No entanto, o final deste tomo 3 deixou-me animado, pelo twist final e que, obviamente, não posso relatar. Mantém-se, por isso, a expectativa para o Livre 4.

Para já, esperemos que a editora Arte de Autor publique também este livro 3.




Volage - Chronique des Enfers

Ora bem. Temos um tipo que morre e vai parar ao inferno, e sobre isso não há qualquer contestação nem revolta nem surpresa. No inferno, como seria de esperar, estão umas outras personagens, também aqui sem surpresa, não muito frequentáveis. A surpresa existe sim, no facto de haver alguns destes seres que acreditam que vão conseguir levar a cabo uma evasão do inferno.

E pronto, é esta a premissa de partida de Volage – que é um anjo, ou melhor, um ex-anjo caído em desgraça – uma obra dos nossos conhecidos Desberg (por exemplo I.R.S.) e Tony Sandoval. Este último, com quem já nos cruzámos várias vezes em festivais nacionais, tem aqui um campo muito fértil para desenhar um ambiente opressivo, dantesco (verdadeiramente, pois Dante é uma referência muito presente na descrição do inferno) com uma explosão de criatividade e de qualidade excecionais, criando um universo imenso, quente e naturalmente sangrento.

Esta fuga, com várias “paragens” como num jogo da glória infernal, é desenvolvida nas quase 130 páginas desta BD, notável do ponto de vista gráfico, surpreendente pela temática, mesmo se num contexto muito tradicional do mapa do inferno de Dante, algum referencial imaginário de Bosch e, claro, um imaginário católico e muito físico da expiação. 

Durante esta fuga, e das ações para escapar a armadilhas infernais (literalmente) o tratamento de alguma miséria humana e da falta de remorsos e ausência de escrúpulos é interessante. Interessante também é que este não é um álbum que eu esperasse, pela temática, de um autor com o historial de Desberg, sendo que a narrativa é bem estruturada e inteligente.

E que tal voltar a ter Sandoval de volta a um dos nossos festivais? Dantesco!






Ce que nous sommes

Este livro "one shot" é a nova BD do Suiço Zep, que esteve no Festival da Amadora de 2011 (creio), e que continua a ser responsável, para além da continuação da série de grande sucesso Titeuf (em 2021 foi publicado o tomo 17), pela publicação de histórias muito interessantes do ponto de vista da reflexão sobre um conjunto de problemas sociais contemporâneos.

Num futuro, não muito longínquo, os humanos passam a dispor à sua nascença, de um segundo cérebro, digital, que lhes permite, sem esforço, aprender diversas línguas, ter acesso a diferentes tipos de informação, a experiências sensoriais diversas, jogos em realidade virtual, etc. Claro que, oh surpresa!, as versões a que cada um tem acesso depende da sua capacidade financeira e estrato social. Alguns há que se encontram completamente excluídos do sistema e têm de viver fora dos centros urbanos, protegidos no seu acesso por barreiras elétricas. Outros dedicam-se a piratear os cérebros alheios, e Constant, a personagem central desta BD é precisamente objeto de um ataque, o que faz com que fique privado do seu segundo cérebro, e tenha de aprender a viver, oh desgraça!, com o seu cérebro normal e preguiçoso. 

Ah, já agora, a manutenção do sistema Dtabrain faz com que o consumo de energia seja tão elevado que a energia disponível para outras atividades fora dos grandes centros urbanos seja muito limitada.

Zep é, de facto, um dos grandes nomes da BD franco-belga, e isso é notório na consistência da história, na excelente estrutura narrativa, na excelência do desenho, na escolha criteriosa das cores. Por isso, este é uma BD interessante que estimula a reflexão, mas que fica um pouco aquém de outras obras do autor, como o magnífico "Un Bruit Étrange et Beau", essencialmente porque a relação entre as personagens e os passos da investigação desenvolvida por Constant para tentar recuperar a sua vida mereciam mais detalhe, maior profundidade e desenvolvimento. Mesmo assim, na minha opinião, constitui uma recomendável e atual leitura.






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