domingo, 30 de abril de 2023

A opinião de Miguel Cruz de: "Jim Bridger", de Pierre Place e "Dissident Club", de Maury e Siddiqui

 


Jim Bridger

As BD abordando o tema do “Oeste Selvagem” tiveram um ressurgimento notável nos últimos anos. Desde o sucesso da série “Wild West” à bem conseguida construção do universo de Duke, passando pelo extraordinário “Hoka Hey!”, muitos são os exemplos desta aparente tendência de mercado. E muitos são os autores que se deixaram seduzir pelas aventuras dos “grandes espaços selvagens” norte americanos. E o mínimo que se pode dizer é que o têm feito com qualidade.

Em janeiro deste ano, foi publicada a BD “Jim Bridger” no contexto da coleção “La Véritable Histoire du Far West” (A Verdadeira História do Faroeste), com argumento e desenho de Pierre Place. Na minha opinião é uma BD histórica muito bem conseguida, apesar de a sua inclusão numa coleção deste tipo se arriscar a retirar o destaque merecido pela obra.

Jim Bridger é um mountain main, um homem apaixonado pela montanha e que conhece caminhos, trilhos, e a dureza da vida nos espaços montanhosos do Missouri. Caçador – é notável o momento em que, a determinada altura, reconhece o seu contributo para o extermínio dos castores na região, acabando com o seu próprio sustento, baseado na pele desses animais – e especialista na relação com as tribos índias (em plena guerra entre o índio e o homem branco) o seu maior desafio é, porventura, sobreviver aos rigores do inverno.

Jim Bridger é uma figura real do pioneirismo do oeste americano, e um dos poucos celebrados pioneiros que conseguiu vir a morrer de provecta idade e na sua cama, acompanhado da sua família. As aventuras que viveu são inacreditáveis, aquilo a que assistiu e testemunhou é de pôr os cabelos em pé, a sua calma e experiência são dignas de nota, mas os seus erros também são reconhecidos.

A narrativa cumpre bem o seu objetivo de retratar uma vida preenchida e que daria para vários tomos, e fá-lo através do testemunho direto de Jim Bridger, preso no espaço de um forte devido à ameaça índia e depois devido a um nevão. O desenho realista é bom, e há um esforço notório e bem conseguido de incluir apenas o essencial, mas sem perturbar a sequência e fluxo da história. O trabalho de cores é importante para as variações de momentos narrativos e para a caracterização de mudanças de cenário.

Editada pela Glénat, esta é uma BD que não passou despercebida, e cuja leitura entretém e é informativa (inclui, aliás, um dossier sobre a personagem).

Dissident Club

Esta interessante BD tem argumento de Taha Siddiqui e procura ser uma obra autobiográfica, sendo o seu título esclarecedor: “Dissident Club – Chronique d’un Journaliste Pakistanais Exilé en France”. 

O autor, jornalista no Paquistão é, em 2018, objeto de uma tentativa de assassinato, que o leva a fugir para o exílio em França. Aí, com o apoio do francês Hubert Maury, escreve esta crónica que procura retratar a sua vida, mas também os eventos que conduziram à tentativa de rapto e assassinato de 2018.

A história é razoavelmente longa, esplanada ao longo de mais de 260 pranchas/páginas, mas muito bem-disposta, servida com um sentido de humor muito agradável, retratando a juventude do autor e, desde cedo, os seus choques com o fundamentalismo religioso, aliás, tendo em atenção a sua relação com o seu pai, que o conduz (nunca sozinho) a um combate pela liberdade de expressão e pela imprensa livre.

Esta obra é muito interessante de acompanhar, nada fastidiosa, e pretende constituir um retrato do Paquistão dos últimos 30 anos. Constitui um romance gráfico com uma narrativa cuidada, uma boa consistência entre o texto e as imagens e pontos de vista de cada “quadradinho”, num todo coerente, bem ancorado na realidade, e em que se vê que o autor, apesar de engajado, faz um esforço por ser o mais factual possível. Os momentos de tensão são bem retratados. O ambiente geral é bem trabalhado e caracterizado, dando uma pulsação de vida às páginas desta BD.

O desenho é realista, limpo ed imperfeito, com as imagens de viaturas ou de outros elementos da envolvente à ação apenas esboçadas. O co-autor Hubert Maury, ex-diplomata, é também o responsável pelo bem conseguido desenho.

Editado pela Glénat, esta é uma obra corajosa de um ativista que mantém o seu sentido de humor, e que nos permite ter uma visão de detalhe de uma realidade e de situações de um dia a dia que desconhecemos e que, muitas vezes, desconstrói coisas que nós tomamos por garantidas.

Termino como comecei: muito interessante e recomendável. Tal como seria interessante a sua tradução para português. Façamos figas.




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