segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

A opinião de Miguel Cruz de "Lefranc T.36 – La Régate", de Martin, Seiter e Régric e "L’Ombre des Lumières T. 3 – Le Démon des Grands Lacs", de Ayroles e Guérineau

 


Lefranc T.36 – La Régate

Normalmente falo aqui das BD que me agradaram, muito ou pouco, mas que apresentam qualidades claras que me permitem dar uma opinião positiva. Faço-o com muito poucas exceções.

Normalmente as “entregas” do duo Roger Seiter/Régric, apesar de raramente atingirem o pico de qualidade do grande Jacques Martin – O Mistério Borg, O Furacão de Fogo, A Grande Ameaça, etc – são a meu gosto. Um argumento interessante, um mistério com contornos complexos e bem estruturados para uma interessante aventura passada ali pela década de 50 do século passado, um desenho linha clara de qualidade, com muito detalhe, pranchas bem organizadas e bonitas, um bom ritmo narrativo, uma referência clara ao estilo de desenho do criador, boas cores, belas viaturas, aviões, navios e comboios de época. 

Já tive oportunidade, mais de uma vez, de estar na presença dos dois autores, simpáticos, conversadores – mais um que o outro – profissionais, disponíveis.

O leitor/a leitora, nesta altura, e depois de tanto tom apologético, perguntar-se-á: o que correu mal com este tomo 36 da famosa série criada em 1954, e que tanto destaque adquiriu na época das famosas revistas francesas de BD, mas também da nossa revista Tintin em português?

Sobre o desenho, não tenho muito a dizer: a qualidade, o trabalho, a recolha de informação a composição de página, os detalhes, tudo isso está lá, e muito bem. Atrativo para o meu gosto, mesmo se os desenhos de rostos do autor me parecem algo rígidos. Em resumo, gosto. 

Os diálogos têm a qualidade habitual, adequados à situação e à época – há apenas um detalhe que muito no princípio me chamou a atenção: em duas páginas quase consecutivas, a mesma personagem expressa opiniões contrárias – mudando aliás o tom de otimista para pessimista. Estranhei, mesmo se num caso a bebida estivesse a suportar o diálogo.

A história parece ser bem estruturada, apesar de algum sentimento de déjà vu. Lefranc acompanha a sua amiga Léa numa regata, que vai atravessar uma zona de ilhas que fazem agora parte da Indonésia. Ao mesmo tempo, interesses económicos e mineiros neerlandeses apostam na autonomia de gestão de um arquipélago apoiando o regente desse arquipélago, contra o sultão, menor de idade, e em prisão domiciliária. Quando uma tempestade apanha o veleiro de Léa e os sobreviventes acabam por ir parar à ilha onde o sultão está detido, Lefranc vai, naturalmente, procurar ajudar o jovem sultão.

A base da ideia é boa, e o início da BD agrada. O problema, na minha opinião, é que algumas linhas condutoras desta história são despachadas em alta velocidade e simplificadas de uma forma que não é fluida, prejudica a credibilidade, e torna-a por vezes insípida. Diria que a opção teria sido ter dois tomos para concluir esta aventura. Eu sei que a política editorial da Casterman no tocante a Lefranc não é essa, mas ter-se-ia ganho qualidade. 

Lê-se bem, não é uma má BD, mas creio constituir uma clara oportunidade perdida.




L’Ombre des Lumières T. 3 – Le Démon des Grands Lacs

Pois é. O senhor Ayroles raramente desilude, e urdiu em três volumes uma narrativa interessante, divertida e com esta novidade de ser baseada na correspondência entre a personagem central, desprovida de ética, um vigarista ordinário de primeira apanha – Saint Sauveur – e algumas das suas “apoiantes” e por vezes entre estas.

É curioso como nesta BD tudo gira em torno de um ser repugnante, atiçando a nossa curiosidade, mas ao mesmo tempo “torcemos” para que tudo corra mal a esta personagem execrável. Seja, inteligente e desenrascado certamente, só é pena colocar os seus pontos positivos ao serviço da baixeza.

As voltas que Saint Sauveur tem de dar neste tomo para conseguir que a desgraçada Aimée d'Archambaud una o seu destino a um Iroquês, assegurando assim a sua sobrevivência. E é das aventura e desventuras em torno desta “aposta pessoal” que o tomo 3 se desenvolve. Não posso desenvolver muito mais sem spoilers, e não o posso fazer porque a atração desta BD é, principalmente, fazer-nos tomar partido e viver o desenrolar das aventuras com intensidade.

A história, ou melhor, o completar da trilogia, é trabalhada com mestria. Bons diálogos, personagens marcantes e com carácter, uma linguagem cuidada (normalmente), uma caracterização de época fortemente credível, uma correspondência epistolar mais real que a realidade.

O desenho cuidado nos detalhes de época, bom trabalho de investigação, muito trabalho de caracterização do ambiente e da envolvente, notáveis opções para assegurar um equilíbrio entre a imagem e o texto das cartas que sustentam a história. Muito movimento, boa composição de página, cores agradáveis, apaziguadoras.

No conjunto, uma série bem conseguida, merecedora de destaque e recomendação, quase 200 páginas que tirar o fôlego. Edição cuidada, tendo a Delcourt até disponibilizado uma caixa para compor o cofret. Uma última palavra para a capa que me parece particularmente bem conseguida. Leiam, porque vale a pena!


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