sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

A opinião de Miguel Cruz de "Soli Deo Gloria", de Deveney e Cour e "Silent Jenny", de Bablet

 


Soli Deo Gloria

Locução latina: “Somente para a Glória de Deus”. Esta BD é uma obra excecional, bem inovadora, única. E, no entanto, a história que narra é bem humana, tão realisticamente humana. Uma BD a preto e branco, com algumas cores associadas a harmonias musicais, e nada mais: para a glória de Deus.

Dois gémeos, Hans e Helma, nascidos em terras germânicas, aparentemente durante o século XVIII, são apaixonados pela música, desde muito cedo na sua vida, marcados por uma ligação entre ambos, e pela influência do seu proscrito tio. A música, no entanto, tem pouco lugar num quotidiano pobre, exigente e desprovido de romantismo. Quando um bando ataca a região, assassinando os habitantes locais, apenas os gémeos sobrevive, e começa aí a sua evolução, desde um orfanato, passando pelo castelo de um poderoso senhor regional, ou pelo serviço de um príncipe, até à atuação junto do santo Pontífice, aceitando um desafio desesperado.

Ao longo dos anos, os jovens sobrevivem à custa de muito trabalho, dos seus dotes musicais, mas particularmente da sua ligação e complementaridade, que acaba por se partir perto do final da BD, deixando-nos com um amargo gosto de desperdício. Helma canta como ninguém e Hans domina os instrumentos como pouco, e com o apoio da sua irmã, é bem-sucedido na composição. O todo vale mais que as partes e o orgulho de Hans cega-o e impede-o de compreender o óbvio. Não suporta ser apagado no todo. 

Não ignoremos o papel que umas misteriosas partições assinadas com SDG – Soli Deo Gloria têm nas descobertas e renovações que o duo vai fazendo ao longo da sua vida. Na procura da gloria divina musical, mas enredando-se no negrume humano. Humano, humano, tristemente humano. Orgulho, ambição, sacrifício.

Como diz um famoso fabricante de violinos, quase no final desta BD: “É impossível, nada neste mundo é perfeito. O sofrimento acompanha a injustiça e a violência envolve-nos. Mas é preciso saber viver com elas, tal como com a beleza, a doçura ou o prazer. Viver com elas e tentar transformá-las em arte”.

Jean-Christophe Deveney e Edouard Cour apresentam aqui um trabalho imaginativo, uma obra envolvente, de grande qualidade – narrativa, gráfica (cada prancha associada a uma partição, e bem sabemos como é difícil falar de música com imagens), tocante e de um realismo a toda a prova. Cada prancha contém tanto detalhe, tantos sinais, tanta beleza, tantos desafios. Uma obra única, de recomendação múltipla! Do melhor que já li este ano. Editado pela Dupuis.





Silent Jenny

Uma pura BD de ficção científica, um futuro onde muito mudou, na sequência das alterações climáticas (e não só). A terra é essencialmente desértica, o ambiente ameaçador, grande parte dos seres vivos foram extintos e boa parte dos humanos desapareceram. Os humanos que sobreviveram agruparam-se de formas distintas, sendo que uma empresa chamada Pyrrhocorp assumiu a responsabilidade de organizar a vida humana em torno de cidades móveis dependentes da sua atividade. E da sua boa vontade. E da sua avaliação de utilidade. E da sua avaliação de bom comportamento. E a sua atividade consiste em procurar microscópicos resíduos de ADN de abelha para tentar “repolinizar” a Terra. Como nem todos os humanos se organizam nestas cidades móveis, há também uma tensão clara entre a organização da Pyrrhocorp e os “grupos independentes”.

Jenny é uma “micróide”, um ser que consegue reduzir a sua dimensão, vive numa das cidades móveis da empresa e arrisca a sua vida precisamente na busca desse ADN de abelhas. O tema da tecnologia/inteligência artificial é também objeto de subtil critica e/ou abordagem pelo autor.
O desenho é muito bom, muito detalhado, com pormenores muito interessantes e surpreendentes, adequado à narrativa ameaçadora e de ficção científica, mas perfeitamente coerente e sem falhas. Graficamente muito bom, uma excelente construção de página, ótima sequência narrativa. As cores são essenciais para a fluidez da leitura, para permitir um bom envolvimento do leitor com a profundidade da história, e para manter uma luminosidade numa narração plena de aspetos negativos, de ameaças, de desânimo. 

A caracterização da personagem principal é um dos aspetos marcantes desta BD, como transformar Jenny num ser profundamente humano, plena de contradições, de luta interior, de dor, de coragem, de força, de ação, de esperança.

E é pelas ações de Jenny que esta história, de um “mundo estragado” é uma história otimista. E é na capacidade de transmitir estas emoções que se joga o sucesso desta BD. Se o conseguir, é uma BD ótima de ficção científica, se não o conseguir, é uma história algo monótona – graficamente conseguida, sempre – de uma busca desesperada pelo futuro, pela sobrevivência, acompanhada de uma crítica a uma sociedade tecnológica e liberal.

Mathieu Bablet apresenta-nos um trabalho “enorme” (principalmente pelo virtuosismo gráfico, não apenas pelas mais de 300 páginas), e de objetivo fácil de discernir. É uma boa leitura, mas a sua classificação como uma leitura essencial depende muito da empatia que se consiga sentir com a(s) personagem(ns). Pela minha parte, gostei, recomendo a leitura, mas compreendo que ela seja desafiante, não porque alguém possa achar mal, mas porque possa achar que podia ser melhor.

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