sábado, 15 de outubro de 2022

As opiniões de Miguel Cruz sobre: "Le Serpente et le Coyote", de Xavier e Matz e "Ténébreuse - Livro 1 e 2", de Mallié e Hubert

 



Le Serpente et le Coyote

Tem vindo a ser, muito recentemente, publicada em Portugal, pela Gradiva, a série “Tango” de Philippe Xavier e Matz (de seu nome Alexis Nolent). Com desenho de Xavier e argumento dos dois autores, esta série tem feito um bom sucesso, renovando um género que ficou conhecido, na revista Tintin portuguesa, através de séries como “Bernard Prince” ou mesmo “Bruno Brazil”.

Matz já tinha trabalhado, com bons resultados, no argumento de uma interessante série, um thriller muito bem construído chamado “Le Tueur,  onde alguns elementos que fariam o sucesso de “Tango” já se encontravam presentes. Dessa série, o público português pôde ter um vislumbre em 2011, através da coleção “Os Incontornáveis da BD” (Asa com o Público), com uma edição de dois tomos de “O Assassino”.

Dos dois autores foi agora editada, na coleção signé da Lombard, a BD “A serpente e o Coiote”, um one shot muito interessante e que merece forte recomendação. Trata-se de uma aventura com alguma ação, muita adrenalina, bastante suspense, perseguições, dilemas éticos, excelentes diálogos e personagens particularmente desagradáveis, com exceção do Coiote… wouiif.

A premissa base da história encontra-se no nascimento, nos Estados Unidos da década de 70, do programa de proteção de testemunhas. É um ponto de partida interessante e inteligente, pois na sua origem, a ideia deste programa inspirava sentimentos diversos e tomadas de posição conflituantes. 

Joe – nome fictício – percorre rotas desérticas dos Estados Unidos, em movimento constante, na sua autocaravana, sabendo que é ativamente procurado por assassinos contratados, e tendo de entrar em contacto periodicamente com um Marshall que lhe foi designado no âmbito do programa. Joe é uma serpente dos grandes espaços, nunca parando, nunca se escondendo, mas sempre atento aos perigos.

Ao longo do percurso, vamos conhecendo a personalidade de Joe, muito através da sua relação com um cão que recolhe um dia, e que afinal é, pelo menos, meio coiote. E relembro, o coiote é, ao longo de toda esta dura história, a única personagem simpática…

Ficamos também a saber qual a história subjacente à situação de fuga e proteção, pois “Joe” era um verdadeiro “barão” no negócio da droga, desde a década de 50 (século passado), e o seu testemunho é essencial para a condenação de um grupo de que fez parte.  

A história, como referi, é muito cativante, realista, e com excelentes diálogos. A personagem principal desta aventura (essencialmente narrada na primeira pessoa) vai-se tornando mais humana através da sua relação, bem trabalhada, com um conjunto de personagens secundárias interessantes.  A violência, inevitável, é muito bem tratada, com sequências em que ela se torna evidente, mas nunca diretamente visualizada, num exercício bem pensado de sugestão. 

Os desenhos de Xavier são excelentes, fazendo-me lembrar, por várias vezes os desenhos, ambientes e “toque mágico” de William Vance. As sequências iniciais e outras diversas em espaço de deserto, bem como numa loja de animais mais próximo do fim, são absolutamente excecionais. Li e adquiri a versão a preto e branco, mas tendo longamente folheado a versão a cores, posso afirmar que com ou sem cores, esta BD é tão apelativa à vista como é interessante de leitura. Aqui ficam as duas capas.






Ténébreuse - livro 1 e 2

Tenebroso. Este é o título da BD que abordo hoje nesta opinião. Tenebroso é o tema. A angústia é palpável está presente do princípio ao fim dos dois tomos que compõem esta história, tendo o segundo acabado de ser publicado pela Dupuis na sua coleção Aire Libre. É curioso comparar o título da coleção “Ar Livre” com o cheiro a enxofre que emana desta BD. 

Por isso, recomendo, os corações mais sensíveis devem ficar por aqui. Até à próxima. Estou a exagerar… o tema é inquietante mas não exageradamente sulfuroso.

E, no entanto, toda esta obra é sensibilidade, como seria de esperar de um autor como Hubert, de que esta é a última obra, uma vez que faleceu há mais de dois anos, quando ainda tinha muito para dar à BD. Dele já aqui falei de várias obras excecionais, uma das quais foi recentemente publicada em Portugal pel’A Seita: “Pele de Homem”.

Os dois tomos de Ténébreuse, passados num período medieval não caracterizado, são essencialmente sobre escolhas. A escolha do caminho a seguir, a escolha de com quem se envolver, a escolha entre ir ou ficar, a escolha do dinheiro, a escolha de que princesas libertar.

O ex-cavaleiro Arzur, caído em desgraça por razões que conheceremos ao longo da BD, afastado dos lares de nobres e de burgueses, proscrito em todo o reino, percorre caminhos lamacentos, hostis e profundamente desagradáveis, quando três velhas igualmente desagradáveis lhe fazem uma proposta: libertar uma princesa e conduzi-la a seu pai.

Arzur, nobre de espírito, pragmático por obrigação e desesperado por circunstância, vislumbra aqui uma oportunidade de redenção que, sejamos claros, nunca vai encontrar (hummm!?!). Isto porque as aparências enganam, o mal tem a teia bem urdida e a paciência de quem já muito esperou, e os monstros não são os aparentes.

Arzur intromete-se assim numa verdadeira batalha entre o mal, representado pela monstruosa mãe da princesa e as forças do desagradável, desonesto e destruidor pai da princesa Islen, que a procura para matar, num combate sem aparente esperança. Arzur tem a infelicidade de se apaixonar pela princesa que se tinha isolado propositadamente e que se recusa a amar, consciente da destruição que esse sentimento trará.

A narração é excelente, entusiasmante e a abordagem profundamente poética, mas num ambiente tão negro e tão angustiante que não é possível ficar indiferente à história. O valor da reflexão vs. a precipitação, a relevância do confronto do coração com a ilusão, são os dois temas principais, nesta abordagem sobre a parte negra da alma humana. O desenho de Mallié é artístico e muito bem adaptado ao ambiente. 

A ler sem moderação, mas com muita atenção aos pormenores. Uma abordagem ao papel das mulheres na sociedade está, ainda, subjacente à narrativa. Uma BD aparentemente de heroic fantasy, tema não muito frequentemente traduzido para português, mas cujo contexto de “tragédia e inevitabilidade” me parece particularmente apropriado.


Sem comentários:

Enviar um comentário