Com tantas boas e novas edições de BD a serem lançadas no mercado português, já algum tempo que não falávamos de edições editadas lá fora com a opinião de Miguel Cruz. Aqui ficam mais duas.
Overseas Highway
Trata-se de um One Shot interessante, bem ritmado, uma realização gráfica que não pode deixar de chamar a atenção, desenhos muito bons - nalguns momentos lembram-me o desenho de Maltaite - com muito detalhe, perspetivas interessantes, sequências entusiasmantes e realísticas, personagens bem desenhadas e muita legibilidade em geral.
Stacy vai trabalhar na limpeza de uma garagem de um antigo piloto automóvel. O trabalho não é dos mais agradáveis ou entusiasmantes nem sequer particularmente bem pago. Mas se fosse só isto… O problema é que como Sarafian é, afinal, um antigo correio de carteis sul americanos, que agora, reconvertido garagista continua a lhes fornecer algum apoio logístico, os problemas sérios estão ao virar da esquina.
E Stacy vê-se fisicamente (…!!) muito envolvida nestes problemas do seu patrão, quando a sua relação com os traficantes se degrada e passa a ser perseguido por mafiosos e psicopatas, e ambos vivem situações de alto perigo e elevada adrenalina, ao longo de mais de uma centena de páginas.
O argumento não é particularmente inovador nem extraordinariamente denso, o objetivo do autor Guillaume Guéraud (acompanhado no argumento pelo também desenhador) não é esse. O foco é colocado na ação, no movimento, nas características de certos personagens, e num tom leve e, apesar de tudo, muito bem-disposto.
Trata-se de uma verdadeira Road BD passada na estrada que liga a Florida ao arquipélago de Keys, e o desenho de Fred Druart vai beber inspiração ao cinema de, entre outros, Tarantino.
Uma aventura animada, uma leitura rápida apesar de os nossos olhos se perderem nos detalhes ambientes de bom efeito, uma BD que é transparente no que nos pretende entregar: um momento de diversão. Editado pela Glénat.
Slava – vol. 1: Après la chute
O tempo de criação de uma obra de banda desenhada é, do ponto de vista do ávido leitor sempre muito longo, do ponto de vista do editor enervantemente imprevisível, do ponto de vista do autor angustiantemente curto. O tempo até à publicação é variável consoante o autor, mas raramente é inferior a sete meses.
Há cerca de sete meses, Putin ordenava a invasão da Ucrânia. Em setembro, e com muita proximidade à morte de Gorbachov, foi publicado o tomo 1 da série Slava, da autoria de Pierre-Henry Gomont – que esteve em Portugal aquando da publicação da sua adaptação do romance “Afirma Pereira”. Esta série que se desenrola em território russo inicia-se em finais da década de 1990, ou seja, no período conturbado associado à queda da URSS e a ascensão de uma clique de oligarcas. Estava o autor longe de imaginar o contexto da publicação desta sua obra.
Slava é um jovem e sensível pintor, cujo desenrolar de carreira – sucesso e queda – está intimamente associado à queda da URSS, e que acompanha um também jovem especialista em todo o tipo de tráficos, de seu nome Lavrine, dedicado sem escrúpulos a negócios diversos, mas também um verdadeiro íman de problemas.
A poucas páginas do início da BD, Lavrine e Slava são salvos por uma jovem russa, de caráter prático, duro, verdadeira especialista de sobrevivência (e com uma pontaria temível), e que, com o seu pai, um perfeito “urso” russo, vão lutando por manter aberta uma mina que sustenta as famílias da região (algures no Caucaso), e que se confronta com um processo de aquisição para desmantelamento.
Slava é a personagem central desta história, que se vê ligado em amizade a personagens com interesses conflituantes, o que permite uma caracterização detalhada de personalidades, da verdadeira confusão do contexto selvagem de saque de negócios, obras de arte e materiais, bem como de profunda corrupção. Sobreviver a qualquer preço é o tema central da narração – de tom desiludido, como seria de esperar, associado ao sonhador Slava caindo na dura realidade de um país em profunda perturbação - desta história que apresenta ainda a curiosidade de ter as onomatopeias em cirílico.
Nina, a jovem russa que marca profundamente Slava de forma, mais do que romântica, inspiradora, acaba por ser central no envolvimento do leitor (verdadeira apropriação de cada um no domínio moral e ético) no esforço para salvar uma comunidade, situação que se mantém em suspenso na última página, com próximo tomo prometido para 2023.
A narrativa é excecionalmente interessante e envolve-nos rapidamente, ajudada por um sentido gráfico notável, quer na composição da página, quer na sensibilidade das cores, no ritmo fluido e contínuo, ou no desenho esteticamente agradável.
A viagem que esta BD nos propõe vale mesmo a pena, tal como a atenção a este autor talentoso. Desejo que esta BD de grande qualidade que nos foi proposta pela Editora Dargaud possa, um dia, ser editada em Português.
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