quinta-feira, 7 de março de 2024

A opinião de Miguel Cruz sobre "Le Combat d’Henry Fleming", de Cuzor e "Les Deux Soeurs", de Sivan e Duhamel

 


Le Combat d’Henry Fleming

Pergunta o/a leitor/a quem é Henry Fleming. Eu esclareço: um jovem de 18 anos que, contra os conselhos de sua mãe, se alistou no exército do Norte, Unionista, e que, na primavera de 1863, se dirige, após uma longa espera, para o seu primeiro combate na terrível guerra civil que tanto marcou os Estados Unidos da América.

Para não induzir o/a leitor em erro, convirá esclarecer que o combate a que o título desta BD se refere não é – no essencial – o, ou melhor, os que se desenrolam no estado da Virgínia, em campos próximos de um rio. O combate de que verdadeiramente esta BD trata é do combate interior da nossa jovem personagem.

Numa adaptação do romance de Stephen Crane, escritor relevante no movimento naturalista americano, e cujo título era “The Red Badge of Courage” – A Insígnia Vermelha da Coragem, Steve Cuzor apresenta um trabalho muito interessante quer na documentação sobre a guerra da secessão, quer na caracterização do combate interior entre coragem e cobardia, entre honra e deslealdade, entre fadiga e sobrevivência, entre deserção e obediência, entre mentira e franqueza. Qual o seu papel nesta guerra? E para quê? Por quem combater? Com quem está a combater?

Steve Cuzor, de que recentemente vimos editado em português “Uma Estrela de Algodão Preto”, outra obra de grande qualidade, parece atraído pela profundidade psicológica das personagens em relatos de episódios de sobrevivência e de honra em conflitos terríveis.

Neste caso, a generalidade das páginas é desenhada em fundo de tom esverdeado, com traços a negro bem vincados, flutuando em ambientes noturnos, campos de batalha envoltos em fumo ou espaços abrigados por árvores frondosas. Mesmos os momentos de alegria e animação são evidentemente marcados pela ansiosidade da espera e pela antecipação da morte. 

Um episódio terrível que, independentemente do seu desenlace global e pessoal, deixa marcas (físicas e psicológicas) evidentes em todos os seus intervenientes.

Editado pela Dupuis na respeitada coleção Aire Libre, este romance em BD é forte e intenso, com Cuzor a afirmar a sua  qualidade de desenho realista e, particularmente, o seu talento narrativo. Embora seja ainda muito cedo no ano, arrisco dizer que esta será uma das BD que deixará marca em 2024.




Les Deux Soeurs

Esta BD – As Duas Irmãs – tem desenho de um autor de que eu aprecio a grande maioria dos trabalhos que dele conheço, seja como desenhador, seja como autor completo: Bruno Duhamel. Já tive, aliás, a oportunidade de comentar “Jamais”, uma BD de 2018.

Em Les Deux Soeurs, Duhamel assegura o desenho, o que não é despiciendo, uma vez que esta é uma obra em que 60% do seu conteúdo depende da capacidade do autor de nos fazer pelo menos sorrir com a comédia de situação. 

Lise e Camille Dutilleux vivem na mesma casa que os seus pais alugaram há 25 anos. Só que, como as duas irmãs aparentemente nada têm em comum, raramente se conseguem falar sem discutir, e embirram com tudo o que a outra faz ao ponto de trazer ao de cima azedumes de infância, acabaram por dividir a casa ao meio através de um muro que separa jardim, entrada, hall, escadas e assoalhadas. Lise vive do lado esquerdo, faz ginástica e meditação, tem uma casa arrumada, de decoração simples e moderna, um jardim bem cuidado, dedica-se à área financeira e dá conselhos de investimento. Camille vive do lado direito, é professora, mais dada a comportamentos alternativos, toca diversos instrumentos (quanto maiores melhor?), tem uma casa desarrumada e “cheia”, uma viatura fortemente poluente, um arbusto seco como jardim, e um gato, objeto de quezílias entre as irmãs. Até o grupo de amigos de cada uma tem características simétricas interessantes, mesmo que a determinado momento nos apercebamos do seu potencial de convergência.

O desenho é claro, o tom é ligeiro, mas não deixa de tratar de assuntos sérios: o proprietário da casa quer recuperar a posse da mesma para a colocar no mercado. Anuncia a esse propósito, o preço de referência: 700 000 euros. Uma das hipóteses que passa pela cabeça de ambas é a de adquirir a casa, sendo que nenhuma delas isoladamente tem condições para chegar perto do preço estipulado. Será que as irmãs se entendem para adquirir a casa? Será que o proprietário está disponível para lhes vender a habitação ou tem outras ideias? Será que as irmãs se aproximarão no processo?

Com argumento de Isabelle Sivan, esta é uma história muito agradável, divertida, com um bom equilíbrio entre momentos sérios e momentos engraçados, com um desenho legível, em que as simetrias em cada página são excelentemente tratadas (a capa, aliás, constitui um bom exemplo), luminoso e “bem disposto”. A editora Bamboo, através da sua coleção Grand Angle, volta a acertar na mouche.





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