sexta-feira, 1 de março de 2024

A opinião de Miguel Cruz sobre: "Proies Faciles – Vautours", de Prado e "Mademoiselle J. – Jusqu’au Bout du Monde", de Sente e Verron

 


Proies Faciles – Vautours

Esta é a segunda BD da série Presas Fáceis (neste caso com o subtítulo de “Abutres”) de Miguelanxo Prado. A primeira foi traduzida para português, e depois disso o autor, frequentador assíduo dos festivais portugueses, já esteve presente na Amadora.

Em “Abutres” encontramos uma abordagem de contornos imaginativos a uma situação revoltante tratada com cores e ambientes sombrios. Tudo começa em 2016 quando uma adolescente, de seu nome Irina, começa a receber, com grande surpresa, mensagens com imagens aparentemente suas, o que a leva a uma investigação junto de professores e colegas, uma vez que as imagens não podem ser suas.

Em 2017 Irina é encontrada morta pelos seus pais adotivos, sendo a investigação confiada à equipa da inspetora Tabares, onde pontua o seu adjunto Sotillo. A inspetora é dedicada ao seu trabalho, imaginativa, desembaraçada, opinativa e eficiente. A sua relação com as hierarquias nem sempre é fácil, tal como não é fácil a sua relação com o seu adjunto, leal, capaz e empenhado, mas com uma perspetiva de vida diferente daquela que marca a sua chefe.

Nesta investigação que envolve o tema da pornografia infantil, temos a oportunidade de cruzar várias personagens que são verdadeiros “Abutres”, e que são tratados por Prado de forma crua e sem dó nem piedade. A relação entre a inspetora e o seu adjunto, que se vai desenvolvendo ao longo das cerca de 75 páginas, pontuada de descobertas pessoais, é interessante, também ela credível, e atenua o sombrio da investigação, ténue luz na escuridão.

Uma BD de forte crítica social e mesmo de ridicularização de alguns valores da nossa época, que merece ser lida apesar da incredulidade com os comportamentos de muitas das personagens. Não há redenção, nem justiça poética, apenas a crueza da exploração humana. 

Na capa temos uma foto de conjunto (numa imagem que nunca aconteceu) de Sotillo, Tabares, Irina e a sua melhor amiga, que ao guardar o tablet de Irina vai impercetivelmente ter um papel importante nesta história. Editada pela Rue de Sèvres.





Mademoiselle J. – Jusqu’au Bout du Monde

Sendo uma BD ainda de 2023, o trabalho de Yves Sente e de Laurent Verron em Mademoiselle J. não podia ficar esquecido a aguardar o tomo 4 desta excelente série.

O primeiro tomo não tinha, no seu título qualquer referência a Mademoiselle J., embora esta seja uma das personagens centrais de uma viagem de cruzeiro aos Estados Unidos, sendo que a personagem de referência é Ptirou – baseado numa história supostamente real e que terá levado Rob-Vel a criar uma das personagens mais amadas e de maior longevidade da Banda Desenhada Franco-Belga: Spirou.

No segundo tomo, estamos em França em 1938, o carácter de Mademoiselle J. afirma-se, a sua amizade com a judia Léa Vollak vai-se construindo, e as ingenuidades sobre as intenções nazis vão desaparecendo, apesar da propaganda em que eram exímios e de que a participação na exposição universal foi um exemplo. A revista Spirou aparece pela primeira vez em 21 de Abril de 1938, como bem assinalado no final da BD no reencontro de Mademoiselle J. com o seu primeiro autor!

Neste terceiro tomo estamos já em 1945. Como em todos os anteriores, a BD começa com a visita muito apreciada do tio Paul nas datas festivas, o que implica a oferta a cada uma das três crianças, de álbuns de BD (nossos bem conhecidos, aliás) e de uma narrativa da história de Mademoiselle J.. As referências à rúbrica do “Tio Paul” na revista Spirou, e aos momentos marcantes de uma escola de BD francesa são evidentes, embora delicadas, inteligentes e subtis, ao longo das páginas desta BD
Léa e a sua família são deportados para campos de concentração. Depois de muitas peripécias, a nossa jovem heroína tem algumas pistas de onde a sua amiga se possa encontrar e vai à sua procura até à Sibéria. Uma aventura atribulada e populada de personagens interessantes, neste como nos anteriores tomos, a ficção cruza-se frequentemente com a realidade e apresenta-nos personagens que, para o bem e para o mal, foram marcantes.

O desenho de Verron é excelente, belo, elegante, sensível e adequado à época que pretende representar. Quer Verron, quer Sente, mostram que se documentaram bastante. A edição francesa pela Dupuis é cuidada, até na qualidade do papel. O espírito humanista, o otimismo, o pensamento positivo, a força interior de Juliette de Saint-Éloi (Mademoiselle J. é um nom de plume para a sua atividade no jornal clandestino Libération en Vue) são notáveis e, mesmo sabendo que se trata de uma ficção onde o acaso e a sorte desempenham papeis importantes na aventura, chegam a ser inspiradores.  

Eis, portanto, uma série em relação à qual importa não passar ao lado, sendo que um quarto tomo passado em 1955 está já anunciado.




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