terça-feira, 22 de março de 2022

As opiniões de Miguel Cruz agora sobre: "Jour de Sable" da autoria de Aimée de Jongh e "Terre" da autoria de Rodolphe (texto) e Dubois (Desenho)




Acabei de ler, de um longo fôlego, as mais de 250 páginas da BD premiada (prémio das livrarias de BD) e nomeada para diversos outros prémios “Jours de Sable”. Ufff. É uma daquelas BD que não nos deixa indiferente.

Trata-se de uma “novela gráfica” editada em francês, e da autoria da Neo-Zelandesa Aimée de Jongh.

Estamos em plena recessão nos Estados Unidos, e John Clark, fotógrafo, é contratado por uma organização federal para obter provas testemunhais do que se passa no dust bowl, isto é, numa zona situada entre Oklahoma e Texas que, por efeitos de uma longa seca e de uma agricultura intensiva, é, há anos, fustigada por tempestades de poeira, tendo-se tornado numa zona desértica e desadequada para viver.

Esta situação, real (embora pouco conhecida, pelo menos por mim, que depois disso, e com base num caderno histórico no final do livro, já procurei alguma informação sobre o tema), este desastre ecológico verdadeiro, constitui a base do périplo do fotógrafo, numa narrativa muito inteligente, sensível, em que assistimos à desconstrução das suas expectativas e ambições e à evolução do seu caráter e da sua relação com as pessoas. 

Esta BD é um achado, imaginativa, artística, bem construída, num ritmo lento que nos envolve cada vez mais naquela realidade ao ponto de não podermos ficar indiferentes ao que estamos a ver, ao que estamos a ler, ao que estamos a testemunhar.

O tratamento gráfico das áreas desertas, das tempestades, dos estados de espírito e do sofrimento, é muito bom. Mas atenção, nada aqui é “adoçado”, apesar da força das personagens, a pobreza é grande, o sofrimento é intenso, o ambiente é sufocante, a história é profundamente amarga. 

De leitura fortemente recomendável.





A outra leitura é uma série da autoria de Rodolphe (texto) e Dubois (Desenho), que já vai no segundo ciclo, sendo que o título do primeiro ciclo de três tomos era “TER” e o presente, que vai no segundo (novembro de 2021) de três tomos, é “TERRE”. 

Para contextualização, o septuagenário Rodolphe (um dos meus autores de referência, e parceiro habitual do “grande” Leo), extremamente prolífico, tornou-se conhecido em Portugal através das publicações incompletas das séries “Aldébaran” ou “Taï-Dor”, e mais recentemente com a “Marca Jacobs”. O Suíço Christophe Dubois tem ainda poucos álbuns publicados, nenhum em Portugal, mas é dotado de uma capacidade gráfica que merece a maior atenção.

Esta é uma obra de ficção científica, que tem início com a descoberta de um desconhecido, nú e sem memória, num túmulo numa zona desértica, incapaz de falar, mas com uma extraordinária capacidade de aprendizagem, e dotado para a bricolage, a quem é dado o nome de Mandor devido a uma tatuagem no seu ombro direito. 

As questões que se vão colocando, com base na ausência de memória de Mandor e na existência local de algumas histórias proféticas acompanhadas por um grupo de “religiosos” são complexas, ao mesmo tempo que as relações entre as personagens e as aventuras de exploração do território vão sendo construídas com uma densidade interessante e com uma pureza poética muito agradáveis. O ritmo da aventura e da ação vai-se acelerando, e o primeiro ciclo acaba numa fuga para o espaço, de um pequeno grupo, de que fazem parte Mandor e uma parcela das pessoas que o acolheram inicialmente.
O terceiro tomo, que é o mais complexo (e por vezes confuso) do primeiro ciclo, deixa-nos em suspenso, até ao início do segundo ciclo, que se inicia com a chegada a um planeta que, na ausência de possibilidade de validação técnica, se pode apenas afirmar que se assemelha à Terra. A evolução da história passa pela interação e dinâmica de várias das personagens, não existindo – exceto no primeiro tomo – qualquer protagonista. O segundo ciclo permite uma mudança de envolvente, mas as surpresas constantes mantêm-se, e a dinâmica narrativa é alterada um pouco pela separação do conjunto de protagonistas em diferentes grupos.

Os desenhos são excecionais, sendo a qualidade gráfica o que primeiro me atraiu para esta série, tendo algo de próximo ao desenho de Schuiten (a melhor comparação que consigo fazer, convicto de sua apenas parcelar adequação). A sequência narrativa é excelente, numa ótima combinação de poesia e de permanente surpresa do leitor, boas sequências de ação, boa exploração da relação das personagens, uma excelente utilização de cor, com cada tomo a terminar com excelentes “suspenses” narrativos. 
Uma série de ficção científica que tem tido bom acolhimento, que, correndo o risco de se prolongar, explora alguns temas interessantes de uma forma gráfica marcante. 

Sem comentários:

Enviar um comentário