quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

A opinião de Miguel Cruz sobre "Le Beau Parleur", de Radice e Turconi e "Fleur de Nuit", de Nizolli e Furio

Le Beau Parleur

Teresa Radice (argumento) e Stefano Turconi (desenho) têm conseguido “entregar” BDs com tanta qualidade (e inovação variável) que a saída de um novo One Shot de sua autoria gera automaticamente uma expectativa de qualidade. Quando a “fasquia” está elevada e as expectativas são muitas, podemos ter facilmente desilusões. Pois bem, se o mais provável é que elas ocorrerão mais dia menos dia, este não foi – na terminologia Asterixiana – a véspera desse dia.

Le Beau Parleur (um excelente “contador de histórias") mantém o nível de anteriores BDs do duo, com um argumento imaginativo, agradável, sempre positivo, bem estruturado, combinando as tradicionais falas em balão com narração em pedaços de folhas de caderno de escola – afinal a nossa personagem central é um jovem teenager. O desenho é elegante, muito cuidado nos pormenores e nas cores, particularmente exuberante nesta aventura passada na floresta amazónica, com uma incursão em Manaus. Dois autores a dominar a sua arte!

Pedro é um miúdo mestiço, com ascendentes italianos, que vive numa zona da floresta amazónica, acompanhado de duas irmãs, gémeas, e de dois irmãos mais velhos, totalmente distintos. Um, responsável e sério (José), desempenha as funções de pai (e de mãe, verdade seja dita), e assegura o funcionamento do lar. O outro, frequentemente ausente (Cent), que aparece aos olhos de Pedro como viajado, desenvolto e uma verdadeira personagem dos livros de aventuras que, em cada visita a casa, oferece a Pedro.

No entanto, alguns problemas pairam no horizonte, como resultado da relação de Cent com um grupo de três outros habitantes da vila, de trato desagradável, rendimento e atividade desconhecida, e de comportamento ameaçador.

Nesta BD de cerca de 200 pranchas, acompanhamos a aventura em que Cent e Pedro acabam por embarcar, para resolver problemas dessa relação entre o irmão mais velho e esse trio de má catadura, enquanto descobrimos muitos detalhes sobre a vida de Cent, a história da família, e as bases da sua relação com Pedro. Pelo meio, os nossos aventureiros chegam mesmo a cruzar-se com uma jovem holandesa voadora (sim, sim!) e a sua família, em turismo na região.

Muito interessante, divertido e otimista, se bem que nem sempre a temática tratada e os comportamentos testemunhados possam ser considerados como agradáveis. A qualidade gráfica e o nível literário do texto transformam esta obra numa BD de recomendação segura! Editada pela Glénat já em 2024.






Fleur de Nuit

A editora Glénat acaba de editar a versão integral que une os dois tomos de Fleur de Nuit, publicados independentemente no ano de 2021. Devo ter estado muito distraído nesse ano, uma vez que não dei pela publicação de tal “série”. E falei com alguns amigos que também a desconheciam. 

O seu desenhador, o Italiano Marco Nizzoli esteve em Angoulême, e a qualidade evidente do seu desenho fez com que a versão integral fosse notada. 

Passado essencialmente em Veneza, mas com várias incursões em Berlin, esta BD aborda a ascensão do fascismo italiano, do regime nazi, e o desenvolvimento da questão judaica, sempre do ponto de vista de uma família alemã a viver na cidade italiana, em que o pai de família tem uma rede de negócios e uma influência decisiva na facilitação da atividade económica no território. Só que, hélas, a família Macra é judaica.

Os gémeos Ester e Jacopo, bem como o seu amigo Hans (Von Strombitz) representam, no verão de 1933, a peça escrita pela primeira, uma história de mulher fatal, que acaba por ligar os três amigos ao longo dos anos, apesar dos problemas que vão surgindo.

Um dos problemas é a relação do pai de Hans, seguidor do regime nazi, mas essencialmente oportunista, com o pai de Ester e Jacopo, otimista crédulo e judeu. Os avanços deste arrogante fascista em relação à mãe da família Macra acrescentam um tom ainda mais desagradável à situação. Essa relação entre as duas famílias torna-se ainda mais complexa com as suspeitas de Von Strombitz sobre a relação do seu filho Hans com Jacopo, o que o leva a forçar à inscrição de Hans nas forças de elite do exército nazi.

O desenho é absolutamente notável ao nível da perfeição técnica, dos muitos detalhes cénicos, das atitudes, da caracterização do ambiente. Notável, notável, Nizzoli assegura aqui um estatuto potencial para futuro!

A primeira parte da narrativa é calma, agradável com frequência, com uma tensão crescente e palpável. A segunda parte apresenta-nos a descoberta, a explosão, a ação, a raiva, o descalabro da situação. 

O argumento é extremamente bem pensado, a sensibilidade das personagens é muito bem tratada, os ódios, as invejas, o ressentimento, a vingança, são credíveis e acreditamos nesta história como perfeitamente real, o que constitui um bom elogio. Mas o aviso é necessário e espero estar a ser claro: A história é dura. Muito dura, mesmo! A italiana Giovanna Furio entrega-nos uma leitura de qualidade, mas com um gosto extremamente amargo.

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