quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

A opinião de Miguel Cruz sobre: "Adèle Blanc-Sec - t.10 - Le bébé des Bouttes-Chaumont", de Tardi e "Nettoyage à Sec", de Mertens


Adèle Blanc-Sec – Tomo 10: Le bébé des Bouttes-Chaumont

A Bertrand editou, em 1977, 1978 e 1979, os três primeiros tomos de “As Aventuras Extraordinárias de Adèle Blanc-Sec” e foi através destas obras que muitos ficámos a conhecer o excecional autor Jacques Tardi, talvez um dos mais engagés na critica social, nos reparos aos comportamentos humanos, tendo publicado algumas das obras mais importantes da Banda Desenhada sobre os efeitos da I Grande Guerra, bem como relatos interessantes e informativos da participação do seu pai na II Grande Guerra, nomeadamente como prisioneiro de guerra, incluíndo análise dos impactos sociais e familiares daí decorrentes.

Tardi esteve em Portugal, na Amadora e, em paralelo com a sua presença enquanto autor de Banda Desenhada, fez apresentações de um seu espetáculo que abordava essencialmente os efeitos da guerra na sociedade.

Voltemos, então a Adèle Blanc-Sec, com a publicação do seu último tomo – Le Bébé des Bouttes-Chaumont – décimo ato de uma verdadeira ópera bufa, que termina de uma forma muito positiva, com a destruição de praticamente todos os demónios que Tardi foi criando ao longo da sua obra. Os primeiros tomos publicados pela Bertrand tinham como títulos, recorde-se, Adéle e o Monstro, O Demónio da Torre Eiffel e o Sábio Louco.

A publicação deste décimo tomo constituiu, para mim, uma enorme surpresa, pois sendo verdade que Tardi anunciou há muitos anos que Adèle Blanc-Sec teria 10 episódios, o que é certo é que passaram tantos anos que pensei esta fase definitivamente encerrada, até porque o autor não vai propriamente para novo.

Esta série será das que se tornam mais difíceis de analisar ou comentar em poucas palavras. Em primeiro lugar, não se aconselha a leitura deste último tomo sem conhecimento dos anteriores. Trata-se de uma conclusão, de uma abordagem positiva às expectativas sobre a humanidade, com, como já referi, a vitória da nossa heroína sobre todo um conjunto de monstros e demónios que anunciavam ter chegado a altura de substituir esta espécie humana, com falhas, por uma outra coisa.

Em segundo lugar, porque cada episódio é, efetivamente, uma ópera louca, sem um nexo narrativo que se consiga explicar com facilidade, uma peregrinação tumultuosa por brechas no comportamento humano criadoras de monstros, num tom de falso policial, cada vez mais fantástico. Neste último tomo, Adèle consegue, in-extremis, escapar à tentativa de envenenamento do Dr. Chou, que transforma todos em animais sem cérebro, mais concretamente em bovinos tresloucados. No entanto, um conjunto de clones de Adèle criados com o objetivo de se fazerem explodir com membros da elite, com o fito de criar uma narrativa acusatória para Adèle, escapam, lançando ainda mais confusão. Com algumas ajudas estranhas, Adèle consegue desmontar toda esta conspiração.

O desenho de Jacques Tardi continua extraordinário, com excelentes imagens de Paris, da sua vida no século passado, pós I Grande Guerra, e com uma capacidade notável de retratar o absurdo e o fantástico.

Gostei de ler mais esta edição da Casterman, recordando as aventuras com que contactei na minha juventude. A obra vale pelo seu conjunto, e como o próprio Tardi refere, é altura de passar à frente.





Nettoyage à Sec

Não deixa de ser irónico que nesta BD de título limpeza a seco, não pare de chover um momento, que não haja um momento em que se esteja a seco. Isso permite-nos apreciar a beleza gráfica desta história, com páginas inteiras de vislumbre de uma cidade (Paris?) molhada, pesada, bela, iluminada pelos Néons. O estilo gráfico de Joris Mertens (de quem já comentei “Beatrice” na Revista juveBêDê) é virtuoso, detalhado, impressionante, luminoso, expressivo e nunca, nunca, cansativo ou repetitivo. O autor, para além disso, usa muito bem a noção de espaço para alimentar a narrativa.

Chuva, chuva, chuva, torna os dias difíceis, para o trânsito – mesmo que na década de 70 – para as pessoas, desejosas de chegar ao seu destino. E então quando se trabalha nas entregas de uma lavandaria e se esquece do chapéu de chuva, a chuva não perdoa!
É esse o caso de François, ser solitário de rotinas diárias bem determinadas, que, tal como o tempo, está cinzento e com a moral mais ou menos em baixo, apesar de permanente sonhar com o prémio do totoloto.
É durante as desinteressantes entregas de roupa limpa, acompanhado de um jovem “chato” que lhe foi impingido para aprendizagem pela dona da lavandaria (familiar da dita cuja e, portanto, ameaça mais ou menos evidente ao trabalho de François), que algo de novo, diferente, e fora da rotina se vai passar, com consequências dramáticas na vida de François. Uma mala cheia de dinheiro, uma oportunidade única de fugir à completa alienação do quotidiano “moderno”, desde que não se seja muito exigente do ponto de vista ético… e a maldita chuva!

O autor constitui-se como uma espécie de marionetista louco, que coloca François em situações crescentemente desagradáveis, recorrendo, a uma boa dose de humor (negro, entendamo-nos), mas esmagando permanentemente a esperança deste ser que não é mau, nem bom, nem demonstra grande personalidade, qual passante por uma vida sem variações nem história.

O/A leitor/a acompanha com agrado esta história de alguns dias na vida de François, sempre à espera que a criatura assuma a responsabilidade sobre as suas ações e se liberte do seu marionetista. A imersão e envolvimento no desenrolar dos acontecimentos chega a ser enervante. Sentimo-nos encharcados com a chuva, notamos o odor do café, e damos por nós exasperados a dizer à personagem para agir de forma diferente, como que pressentindo o que se vai passar.

Começando com lentidão, numa boa apresentação do contexto e dos personagens, as últimas páginas desta BD constituem uma verdadeira torrente de acontecimentos que nos deixam esperançados no futuro do nosso François (estou a evitar o termo, o nosso herói). Mas esta crónica urbana, para que não fiquem dúvidas, é cruel.

Editado pela Rue de Sévres, esta é uma BD muito interessante e que merece a recomendação, mas a ler preferencialmente num dia de Sol.

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