terça-feira, 24 de janeiro de 2023

A opinião de Miguel Cruz sobre: "Chroniques de Melvile", de Romain Renard

Chroniques de Melvile

Melvile é uma cidade dos Estados Unidos, uma cidade imaginária com um ambiente à la David Lynch (para quem se recordar de Twin Peaks). Melvile é também uma série de Banda Desenhada em três tomos com mais de 700 páginas e que viu editada em 2022 um volume especial com o título traduzido para português de “As Crónicas de Melvile”, que veio acrescentar mais de 200 páginas a esta obra.

Ao longo destes tomos, temos oportunidade de conhecer esta cidade perdida nas montanhas, assume-se, algures no Norte dos Estados Unidos, de estabelecer uma ligação com alguns dos seus habitantes, mas particularmente perceber uma teia de relações familiares, sociais, de amizade e ódio, inveja e mentira, que plana sobre um ambiente hostil, com contornos fantásticos, e marcado pelos acontecimentos (detalhadamente relatados ao longo da série) que conduziram à fundação da cidade por um conjunto de peregrinos oriundos do velho continente.

A cidade é a protagonista, sendo que em cada um dos tomos podemos acompanhar uma história, autónoma das restantes. No terceiro tomo, na minha opinião o melhor, podemos acompanhar, através do olhar de um teenager que passa os verões em Melvile com a sua avó, a história de Ruth Jacob, uma jovem desaparecida misteriosamente e, cujo caso, muitos anos depois, continua por resolver.

Melvile é uma cidade que passou por três fases essenciais: uma primeira, desde a sua criação, em que alguma prosperidade económica resultante da atividade da sua importante empresa de serração, é sustento de um conjunto vasto de famílias, a que se acrescentava um fluxo sazonal de trabalhadores; uma segunda, após a suspeita morte do último (?) descendente da família fundadora em que, com o encerramento da empresa de serração, a cidade parece perder um pouco o seu rumo; uma terceira em que a cidade se prepara para ser inundada com a construção de uma barragem sendo, portanto, marcada pela “partida”.

Se é verdade que cada um dos tomos e o volume especial (que inclui um conjunto de histórias curtas) se podem ler autonomamente, não há dúvida que a leitura do todo nos permite uma visão completa da complexidade, ambição, consistência e qualidade da obra. O tratamento dos sub-entendidos, da culpabilidade, da memória e da vida coletiva é absolutamente fantástica, criando uma identidade única, com uma qualidade de texto muito interessante.

Não me eram familiares quaisquer outras obras do autor, Romain Renard (de quem descobri uma carreira musical), mas a qualidade do desenho realista, a capacidade de criação de um ambiente de contornos fantásticos, a capacidade de traduzir uma angústia palpável, são merecedoras de um destaque. 

Esta obra fortemente influenciada por referências cinematográficas, editada pela Lombard, é inabitual e surpreendente.






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