terça-feira, 10 de janeiro de 2023

A opinião de Miguel Cruz sobre: "Les Pizzlys", de Jérémie Moreau e "Shibumi", de Perna e Hostache

 



Les Pizzlys

Um Pizzly é um animal (urso) que resulta do cruzamento entre um Urso Polar e um Grizzly, resultado do efeito do aquecimento global no gradual afastamento dos Ursos Polares da zona mais próxima do Polo.

Nesta BD os Pizzlys são, no entanto, várias personagens obrigadas a um significativo esforço de compreensão das mudanças que enfrentam e de adaptação ao seu meio envolvente, a começar por três jovens que, após a morte da sua mãe, procuram sobreviver na grande metrópole, com o irmão mais velho a trabalhar durante muitas horas como condutor de Uber para tentar sustentar a família. A sobrecarga de trabalho leva-o a ter um acidente que vai ser o ponto de partida para toda a narrativa.

Os três irmãos - Nathan, Etienne e Zoé - e uma cliente do Uber, Annie, originária do Alasca, mas habitante em França há várias décadas - decidem mudar-se para a cabana de Annie no frio e gelado norte.

Esta é uma mudança de vida significativa para três jovens da cidade: o frio, a caça, as grandes e brancas distâncias, a ausência de rede de telecomunicações, as limitações energéticas, tudo isto obriga a um processo de adaptação muito difícil, tanto mais que, de forma distinta, qualquer dos três jovens enfrenta uma crise pessoal, de crescimento, de valores e de referenciais.

Só que, para complicar o processo de adaptação a uma nova vida, os visíveis efeitos decorrentes de alterações climáticas criam um desafio adicional para toda uma comunidade, que olha com alguma desconfiança para aqueles três jovens brancos.

Jérémie Moreau é um jovem autor, já premiado em Angoulême, que insiste em inovar nos seus temas e nas suas abordagens gráficas. O livro é muito interessante, o seu objetivo é claro, a narrativa muito fácil de acompanhar, com diálogos bem pensados e na dimensão estritamente necessária. A abordagem gráfica, com aplicação de cores diretas (o autor desenha em computador) é absolutamente espantosa, diferente, numa espécie de linha clara, de contornos arredondados, muito delicada, com evidentes influências de mangá. Não se trata apenas de retratar com virtuosismo gráfico o território e os grandes espaços. As pranchas relativas aos sonhos e delírios das personagens tem uma natureza quase psicadélica que permitem ao autor fugir a uma composição tradicional das pranchas, o que confere ao conjunto um nível artístico muito interessante (e que inclui a própria capa).

Das melhores BDs que li este ano, editada pela Delcourt, Les Pizzlys tem ainda a vantagem de nos deixar a refletir sobre o tema das alterações climáticas e da sustentabilidade em geral, com os olhos postos no concreto. 

De referir ainda que este livro já foi nomeado para vários prémios (como o Prémio Fnac Inter e Prémio ACBD 2023) e que está na pré-lista dos 85 livros para o 50.º Festival de Angoulême a realizar no final deste mês.





Shibumi

Nome e capa deixam-nos uma breve dúvida sobre se estamos perante um Mangá ou uma BD Franco-Belga. Com o livro à nossa frente as dúvidas desvanecem-se. Referências ao Japão há muitas, começando pela capa, mas é uma BD. Editada pela “Les Arènes”, esta BD constitui uma elegante e cuidada edição, que comporta mais de 220 páginas.

Está, portanto, garantida uma leitura demorada, nunca maçadora e com vários elementos inovadores que se reconhecem e destacam, embora por momentos se esperasse um pouco mais de intensidade emocional, que os autores Patrice Perna (argumento) e Jean Baptiste Hostache não nos concedem. 
Adaptado de um romance de espionagem do autor norte americano Trevanian (pseudónimo de Rodney Whitaker), quase nada nesta BD está em linha com o esperado. Uma jovem e inexperiente terrorista (tão inexperiente que chamar-lhe terrorista é claramente exagerado) escapa (de forma tão estúpida quanto perfeitamente possível) de uma situação de grande perigo, na sequência da qual vai procurar a ajuda de um assassino profissional particularmente temível, de que ouvira falar por relação familiar.

Esse assassino, Nicolaï Hel, acaba por se envolver, muito contra a sua vontade, numa história de relação complexa entre Israel e os países árabes, tendo como ponto de partida uma vingança sobre os militantes do grupo setembro negro (responsável pelo atentado dos Jogos Olímpicos de 1972). Como verá quem ler esta BD, Nicolaï envolve-se sim, de uma forma dramática quer para si, quer para os seus adversários, mas não se poderá dizer que tal intervenção constituiu uma verdadeira ajuda à jovem.

Ao longo da BD vamos descobrindo pequenos elementos do passado da personagem central da história – sem que nunca nos seja possível sentir uma verdadeira apreciação ou admiração pela mesma – e os acontecimentos que o levaram a tornar-se um assassino profissional. Ou melhor, atenta a sua “formação” e o tempo que passou no Japão, um verdadeiro Samurai, com um código de honra muito particular.

Boa parte da história passa-se no país basco, na década de 70, com os autores a usarem bastante humor para a caracterização de hábitos e comportamentos dos “nativos”. Nicolaï Hel vive nessa região, e apesar da sua personalidade fria, e de sustentar a sua vida no shibumi - uma forma pouco conhecida de aperfeiçoamento pessoal e de capacidade de se projetar para fora do mundo envolvente – consegue estabelecer uma relação estreita com vários dos seus “vizinhos”. Essa relação estreita existe também com um conjunto de outras personagens que lhe facilitam um apoio logístico e de informação absolutamente notável, especialmente para um assassino que se especializa em matar com uma arma simples: o objeto que tiver mais à mão.

Nicolaï Hel é perseguido, também por razões pessoais do passado, por uma organização – Mother Company – que recorre ao apoio da CIA para levar a cabo as suas ações. Apesar disso, as cenas de ação não são muitas. Mas os diálogos são excelentes, e atingem níveis de cinismo bastante elevados. Os desenhos são angulosos e frios, muito adequados à história que, na conjugação texto-desenho, apresenta uma excelente fluidez de leitura.


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