terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

A opinião de Miguel Cruz sobre: "Mattéo 6: (2 septembre 1939 - 3 juin 1940)" , de Gibrat e "Purple Heart 4: Jambalaya Blues", de Warnauts e Raives

 


Mattéo 6: (2 septembre 1939 - 3 juin 1940)

Agora que terminou o festival de Angoulême e que foram já distribuídos os muito variados prémios de reconhecimento e celebração de bandas desenhadas e autores, voltemos aos comentários sobre algumas das boas edições de BD.

A série Mattéo, de Jean-Pierre Gibrat, cujos primeiros cinco tomos foram já publicados em Portugal (primeiro pela Vitamina BD e actualmente pela Ala dos Livros) e que acompanha as aventuras de um homem, conduzido pelo destino e pela sua relação com as mulheres, ao longo de um período que vai da primeira à segunda guerra mundial, passando pela revolução russa e pela guerra civil espanhola, terminou!

Certo da edição em Portugal deste sexto e último capítulo, não tenho qualquer pejo em afirmar que se trata de uma série absolutamente fantástica. Quanto ao desenho, penso não ser necessário destacar o virtuosismo e a qualidade do desenho de Gibrat, um dos autores de referência da Banda Desenhada Franco-Belga. Os desenhos são verdadeiramente belos, mesmo que o que retratam esteja longe de o ser. A expressividade dos rostos continua a ser marcante no trabalho de Gibrat.

Quanto à narrativa, que atravessa cerca de um quarto de século, ela é não apenas excelente como retrato histórico e mordaz das consequências da guerra, mas consegue também a proeza de dar vida a um conjunto vasto de personagens – vários dos quais se voltam a cruzar no final da série, neste tomo 6 – de que percebemos as motivações, as razões subjacentes às suas ações, nunca perfeitas, mas verdadeiramente humanas, confrontadas com o pior da humanidade. 

No tomo 6, o tema central é o regresso de Mattéo às origens e a tentativa de se reconciliar com o seu passado, sendo central a sua relação com a sua mãe e a tentativa de estabilizar uma relação com o seu filho (que não sabe que o é) Louis. Este tomo 6 é o menos centrado nos acontecimentos decorrentes da defesa de determinados ideais, que Gibrat muito bem caracteriza ao longo da série…os anos passaram, as derrotas deixaram marcas. Por uma vez, Mattéo tenta ser o condutor da sua vida e das suas ações. Se finalmente o consegue ou não, fica para descoberta da leitora/leitor.

Ao longo da série ficámos tão habituados às personagens, com as quais vibramos, sentimos e sofremos, que o terminar da série é sempre um momento difícil. E é esta constatação que nos prova estar perante uma série de qualidade, uma das melhores que a Banda Desenhada nos pode apresentar. Uma edição Futuropolis e esperemos que em breve pela Ala dos Livros.




Purple Heart 4: Jambalaya Blues

Purple Heart é uma série que, com a publicação do seu tomo 4, chega ao fim. É importante que não passe despercebida.

Os autores desta série são Éric Warnauts e Raives (pseudónimo de Guy Servais), nascidos na Alemanha e na Bélgica respetivamente. Destes autores recordo-me de ter sido publicado em Portugal, na década de 90, a excelente BD “A Inocente”.

Estes dois autores constituem um caso raro e muito interessante no panorama da Banda Desenhada: Warnauts constrói a base do argumento e desenham ambos, ou seja, todos os seus álbuns são realizados a quatro mãos, num exercício de confiança e cumplicidade extraordinários, e que dura há mais de 30 anos. As cores ficam a cargo de Raives. Adicionalmente, eu que li já muitos dos seus álbuns, constato que nunca desiludem…mesmo quando não estamos perante um dos seus melhores trabalhos, estamos perante um bom trabalho.

Warnauts e Raives focam-se, como temas base, na crítica social, as desigualdades, as descriminações, nomeadamente a racial. Se, em Purple Heart, seguimos as aventuras de Josuah, um fotógrafo que acaba de ser desmobilizado, com o fim da segunda grande guerra, após ter recebido a condecoração Purple Heart e que, a contragosto, mas forçado pela sua mãe, se torna uma espécie de detetive privado, neste tomo estamos perante um relato impressionante da segregação racial no sul dos Estados Unidos da década de 50.

Josuah vai colaborar com Winston, seu ex-camarada de regimento, que lhe solicita ajuda para encontrar a sua sobrinha desaparecida algures no Luisiana. A sua sobrinha é uma das muitas jovens de cor desaparecidas nos últimos anos naquela região, assunto conhecido, raramente falado, e sobre o qual a polícia local pouco ou nada faz.

O desenho realístico, anguloso, característico da dupla, é detalhado, expressivo e, como sempre, extremamente bem trabalhado nas sequências e legibilidade. As cores, os contrastes luz/escuridão, dia/noite, são muito bem trabalhadas. A história surge-nos como perfeitamente real, credível, angustiante. As personagens, muitas delas com comportamentos dúbios, outras procurando manter-se o mais possível à margem dos problemas, são muito bem caracterizadas, e geradoras de compaixão/repulsa/desprezo.

Uma série que se termina e que se recomenda, uma dupla de autores já com mais de 40 álbuns publicados, mas a seguir. Uma edição Lombard.

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