quarta-feira, 17 de julho de 2024

A opinião de Miguel Cruz sobre "Hey Djo!", de Sowa e Delinte e "Un Sombre Manteau", de Jaime Martin

 


Hey Djo!

O desenho desta BD é simples e com imperfeições estilísticas, enquadramentos muito próximos, quadradinhos de formato pequeno. A própria BD tem um formato reduzido e espraia-se por quase 170 páginas.

O desenho não é particularmente atraente, e esta BD quase que me passou despercebida. E isso teria sido pena porque embora tenha uma premissa de base muito específica, é uma obra muito interessante, e o argumento e os diálogos baseados num quotidiano sem floreados sustentam muito bem a leitura e a simplicidade do desenho.

Djo tem 13 anos (“quase 14”) e é filho de um camionista belga. A sua mãe “forçou” a situação em que, no seu período de férias vai acompanhar o pai durante duas semanas, para se conhecerem melhor, passarem mais tempo juntos, e para que Djo possa conhecer a realidade do trabalho de camionista, que leva o seu pai a passar tanto tempo ausente.

A relação entre o adolescente em afirmação e o seu pai de convicções bem estabelecidas é naturalmente difícil. Se é verdade que a realidade da vida de camionista atiça a curiosidade de Djo, e que muitos dos encontros que vão fazendo servem para um melhor conhecimento mútuo bem como para reforçar laços entre ambos, algumas personagens vão ser marcantes para o jovem, para a afirmação do seu caráter, e para o seu crescimento pessoal. Aqui o destaque vai para o momento em que decidem dar boleia a Amaury “homem livre”, que saiu de casa atenta a relação difícil com os seus pais, e também para o encontro com duas jovens prostitutas.

Ambiente e descarbonização, migrações e insegurança, cadeia logística e crescimento económico, o papel da mulher numa profissão maioritariamente masculina: tudo isto é aflorado de maneira inteligente e não dogmática, aproveitando o olhar de um adolescente belga. A história é fluída, as surpresas são algumas, as aventuras são feitas à medida que os kms vão sendo percorridos. Alguns riscos, mas nada acontece de muito desagradável.

Para além disso, nós aproveitamos a viagem para melhor conhecer a realidade (alguma realidade) desta profissão no centro da Europa.

Editado pela Gallimard, com argumento da polaca Marzena Sowa e desenho do belga  Geoffrey Delinte, esta BD constitui, efetivamente, uma surpresa muito agradável. Atenção, não confundir Djo com Joe.




Un Sombre Manteau

Um livro muito esperado do espanhol Jaime Martín, Un Sombre Manteau (Um Manto Escuro), é um One Shot de cerca de 100 pranchas, intenso e amargo.

Jaime Martín é dono de um traço seguro e elegante, que se tem vindo a complexificar e a afastar da linha clara, mas que dá algumas ideias da mesma, arrumação clássica de páginas, mas uma excelente profundidade de enquadramentos, e variações de perspetivas que tornam a narrativa muito dinâmica, facilmente percetível, e os ambientes profundos e carregados de intensidade dramática.

Estamos na Espanha do Século XIX, nos Pirenéus, e a narrativa é desenhada no envolvimento entre habitantes “da montanha” e a população de uma pequena vila um pouco “mais abaixo”.
O início da BD apresenta-nos Mara, uma curandeira que percorre caminhos difíceis e com risco para entregar os seus remédios e mezinhas, e para ajudar pessoas e animais. Já com uma certa idade e doente, vai pensando no futuro da sua atividade, no seu, e no dos que lhe testemunham amizade. Tratada com desconfiança por alguns – chega mesmo a ser tratada de feiticeira – vê os seus terrenos e a sua casa serem alvo de cobiça.

A vida é dura e rude, as invejas, maledicências e ambições são comuns e criam uma tensão permanente, o pároco local atiça rancores e induz comportamentos. 

O rame-rame local é perturbado por dois acontecimentos quase simultâneos: um primeiro, a chegada às terras de Mara de uma jovem ruiva, fugida, de passado desconhecido, mas que se saberá, é procurada pela polícia. Permanentemente calada (passando por muda) e inquietante, terá um papel importante no desenrolar desta história profunda e consistente com a época descrita.

O segundo é a perceção de que alguns animais terão contraído raiva. Pasteur ainda não tinha inventado a cura, portanto a perturbação no sustento e na vida daquelas pessoas constitui um drama significativo.
A tensão é palpável desde o início da narrativa, e vai evoluindo num crescendo angustiante (estamos mesmo a ver onde cada olhar, cada palavra, cada infeliz ação nos vai levar) até à explosão final.

Editado pela Dupuis, na sua reputada coleção Aire Libre, esta BD beneficia ainda de um tratamento de cores muito cuidado, minuciosamente pensado ao serviço da intensificação do drama e da evidenciação dos pontos de esperança. Percebe-se que o autor tenha estado envolvido nesta obra mais de dois anos e meio, como refere nas notas iniciais.




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