quinta-feira, 11 de julho de 2024

A opinião de Miguel Cruz sobre Carcajou", de Eldiablo e Deroche e "Ulysse et Cyrano", de Servain, Dorison e Cristau



Carcajou

Carcajou é um Western.

Carcajou é uma aventura intensa, plena de tensão.

Carcajou é cor, explosão, numa aventura bem narrada com muitas páginas de limitado diálogo.

Carcajou é passada no Canadá, na vila de Sinnergulch, em que o dono daquilo tudo é o riquíssimo Jay Foxton, que explora petróleo, emprega muita gente, tem o presidente da Câmara e o Xerife na sua folha de pagamentos.

Carcajou apresenta-nos um Xerife “deixa andar” e um Presidente de Câmara “não sei de nada, não quero saber de nada”.

Em Carcajou, temos uma pequena parcela de terreno numa colina que se mantém ainda e sempre fora do controlo de Foxton e que é pertença de Gus Carcajou. 

Carcajou é uma BD que foca a ânsia de poder e a necessidade, ânsia, mais que ambição absoluta de controlar todo o terreno.

Também em Carcajou, a dona do cabaret local é mulher forte e de carácter, que não é grande apreciadora de Foxton.

Carcajou é aparentemente uma soma de lugares-comuns, cujo resultado é uma BD movimentada, um choque de diferentes personagens, em que todos desempenham o seu papel atribuído de forma minuciosa e credível, que se lê de um fôlego (ou dois, um para cada conjunto de 100 páginas), com um desenho característico, simplista, muito colorido e expressivo, e plena de surpresas. 

Carcajou é a BD primeira de Djilian Deroche no desenho, e mais uma criação da recheada imaginação do francês El Diablo, de seu nome verdadeiro Boris Dolivet.

Carcajou é editado pela Sarbacane e, para quem se consegue adaptar ao estilo de desenho (que tem algumas semelhanças com o estilo de Christophe Blain), é uma leitura aconselhável, não apenas por ser plena de surpresas, mas porque a qualidade narrativa de texto e imagem conjugados está presente.





Ulysse et Cyrano

Quase a concluir o primeiro semestre, a Casterman editou um livro de peso: grande formato, mais de uma centena e meia de páginas, uma BD de grande qualidade – um dos TOP editoriais do primeiro semestre de 2024, que será certamente uma das BD do ano (entre outras, aproveito para recordar o excelente La Cuisine des Ogres, de que descobri há dias em Bruxelas, ter recebido o prémio FNAC Bélgica de 2024).

O argumento é do nosso bem conhecido Xavier Dorison (em português já temos Long John Silver, Undertaker, W.E.S.T., 1629…ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta, XIII Mystery, O Castelo dos Animais e devo estar a esquecer algum), acompanhado por Antoine Cristau, especialista em gastronomia – porque esse é o tema da BD (ou será apenas a desculpa?).
O excelente e elegante desenho realista ficou a cargo de Stephane Servain, que se encarregou também das cores, com particular sucesso e qualidade. Um desenho luminoso e que nos transmite um sentido positivo forte.

Quase 10 anos são passados desde a conclusão da II Grande Guerra e Ulysse é um jovem que, sem grande entusiasmo, dedicação ou vocação, vai sendo preparado para suceder ao seu pai à frente de uma das grandes empresas de França (cimentos essencialmente) e de uma grande fortuna.
Só que, subitamente, o seu pai é acusado de ter colaborado com os agressores nazis e, enquanto o assunto vai sendo discutido, Ulysse vai com a sua mãe e o seu apelido de solteira algures para a região de Borgonha. E aí vai encontrar um Cyrano de nariz pequeno, barriga e coração grandes, verdadeiro eremita, tímido mas explosivo, um grande cozinheiro.

Se a relação entre os dois se inicia pela vontade que Ulysse tem de conseguir que a sua mãe, fragilizada, se alimente, uma amizade profunda e uma vocação culinária vão acabar por nascer. 
Esta BD, para além de abrir o apetite, tem uma linha condutora aparentemente simples, e aborda com grande sensibilidade questões particularmente complexas, que vão desde o papel das mulheres na sociedade, a choques geracionais e choques entre diferentes estratos da sociedade ou mesmo entre citadinos e “rurais”, passando pela evolução das técnicas culinárias e o esforço e sofrimento associados à obtenção e manutenção de estrelas culinárias. Mas essencialmente, esta BD fala-nos de liberdade, fraternidade e amizade, e a importância, muitas vezes esquecida, de se ter prazer naquilo que se faz.  IN VOLUPTATE VERITAS, a verdade está no prazer.

Sim, alguma utopia, muito bem tratada ao longo das mais de 150 páginas; sim, algumas personagens de caráter pouco inovador, mas contextualizadas tão inteligentemente que o prazer de leitura é enorme, verdadeiramente até ao fim da última página (que nos enche o coração). Para consumir sem moderação.




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