segunda-feira, 27 de junho de 2022

A opinião de Miguel Cruz sobre três livros: "Les Dames de Kimoto", de Cyril Bonin; "The Last Detective", de Claúdio Alvarez e Geraldo Borges e "Something is Killing the Children", de James Tynion IV e Werther Dell’Edera


Les Dames de Kimoto

Confesso ter uma boa impressão sobre a generalidade dos exercícios de adaptação de obras literárias à Banda Desenhada, talvez com exceção de alguns exercícios inseridos em coleções de divulgação (a granel) de obras literárias (ou seja, há exceções). E tenho essa boa impressão desde a grande paixão pela adaptação da Ilha Misteriosa de Júlio Verne pelo F. Caprioli, e editada em português.

Vem este comentário a propósito de ter gostado bastante da adaptação do romance de Sawako Aryishi, com o nome de Les Dames de Kimoto, de Cyril Bonin e publicado pela Sarbacane em Março de 2022. Mas gostei mesmo muito! 

Não conhecia o autor do romance, sendo que conheço já bem a obra do autor de Banda Desenhada, desenhador, ainda no final do século passado, de uma série que apreciei particularmente, chamada Fog, que relata um conjunto de mistérios e crimes passados na Inglaterra Vitoriana, num ambiente de grande miséria e muito nevoeiro (Fog, mais corretamente, atenta a poluição da época).

Mais de 20 anos mais tarde, tive o prazer de ler Stella, um One Shot estranho que acompanha um autor de romances, em queda de popularidade, e que tem uma relação mais do que ficcional com a sua heroína cujo nome dá título à obra. Uma história amarga e fantasiosa, de que ou se gosta ou se odeia. Eu fiquei-me pelos primeiros. 

Isto para citar apenas dois exemplos.

Em Les Dames de Kimoto, tudo começa com a descrição dos elos de ligação, através da tradição japonesa, entre uma avó (Toyono), personagem de grande caráter inteligência e dominante, e a sua neta (Hana), personagem principal e central da quase totalidade desta obra. 

Ao longo desta BD vamos tomando conhecimento do papel reservado às mulheres no Japão desde o final do Seculo XIX, e a transformação da sociedade japonesa, das tradições e da condição das mulheres, gradualmente a partir do início do século XX e, em particular com a chegada ao poder dos nacionalistas, e depois com o eclodir da II Grande Guerra.

Para tal vamos acompanhando a história de Hana – do seu marido, um político em ascensão, num casamento arranjado pela sua avó, e também do seu cunhado pouco convencional – sempre dividida entre o cumprimento escrupuloso do seu papel tradicional, subalterno, mas impactante, e a sua necessidade de agir em função dos problemas que tão bem vai antecipando à sua evolução social desejada, da sua revoltada filha Fumio e da sua neta Hanako, inteligente e à procura do seu papel numa sociedade em grande mudança. 

Uma BD inteligente, interessante, muito bem trabalhada ao nível da sequência narrativa, dos detalhes do contexto social e relacional, com um desenho muito apropriado, agradável, colorido, e um tom narrativo adequado para movimentações essencialmente de bastidores, e atuações muito subtis. São mais de 100 páginas, a leitura é longa e os detalhes abundam e são importantes, mas é difícil parar a leitura antes de se chegar ao final.

O contexto histórico é suficientemente detalhado, descrito sem estados de alma ou excessivas agitações, apesar das posições de revolta de Fumio. E a adaptação de todas e todos ao contexto político é muito interessante.

Trata-se de uma realidade que não nos é muito próxima, e esta BD é uma verdadeira lufada de ar fresco nas temáticas habituais, de leitura muito recomendada, embora se saiba que o contexto literário e pausado da obra não será do agrado de todos.




The Last Detective

Mais clássico não poderia ser: um polícia solitário, desiludido com a vida, isolado na selva, vê-se obrigado a sair da sua “reforma” para conduzir uma investigação associada a uma droga com efeitos devastadores ao final de um período de 5 dias, e recordar, com dor, a investigação que muitos anos antes lhe destruiu a carreira e lhe deixou marcas psicológicas e físicas.

Corrupção, crime, violência, num contexto de América do Sul, num país ou Estado chamado de New Amazonia.

O que já não é clássico é que esta aventura é passada num futuro (próximo?), as armas são tecnologicamente muito evoluídas, androides e implantes, tecnologias de localização são comuns, o que constitui um apoio grande para o nosso detetive Joe Santos (que já foi mais jovem!).

A ação é o elemento dominante deste One Shot (pelo menos anunciado como tal) que, com algum humor, procura abordar os temas da corrupção de políticos e da polícia, e ainda do impacto da inteligência artificial na vida em sociedade.

Este Comics da autoria de Claúdio Alvarez, do Chile, no texto e de Geraldo Borges, do Brasil, no desenho, cria um universo interessante e com alguma densidade de caracterização, descreve uma situação política credível, os desenhos são bem adequados às cenas de ação, embora o todo precisasse de mais do que 72 páginas para ser eficaz e para nos convencer totalmente.

Como em 2020 já tinha comprado um outro One Shot do mesmo argumentista (e com capa de Geraldo Borges) Sacred Bullets (mas aí em versão inglesa) e achei interessante e com alguns elementos inovadores, quando vi a publicação em França, pela Drakoo, deste The Last Detective, considerei uma boa aposta. Não estou arrependido, apesar de considerar que falta alguma profundidade à história, o que - estou a tentar adivinhar - pode eventualmente ser assegurado em publicações futuras de continuação da série.




Something is Killing the Children

Demorei bastante a aderir a esta série, apenas atento o seu nome, que prometia desagradabilidade. E a desagradabilidade que prometia, entrega, porque efetivamente, something is killing the children!

Foi agora publicado o Book One Deluxe Edition (compilação dos #1 a #15), da Boom Entertainment, e lá acabei por entrar nesta série cujas premissas são terríveis, e na qual não há qualquer promessa de um fim feliz.

James é o único sobrevivente do verdadeiro massacre que seguiu a ter contado o seu sonho aos seus amigos. Traumatizado, procura vingança, e encontra em Erica, uma caçadora de monstros, o crédito e a compreensão necessária, uma vez que os adultos “normais” não conseguem acreditar na explicação (?) para o ocorrido.

E estas são as duas linhas condutoras do primeiro ciclo deste universo: a investigação, o envolvimento de personagens, as perguntas e as descobertas decorrentes do que aconteceu e associadas aos medos mais profundos da adolescência, uma vez que alguma coisa anda a matar as crianças, e a linha de alargamento do universo através da caçadora de monstros que pertence a uma sociedade secreta, o que permite dar uma densidade de contexto muito interessante, ao mesmo tempo que Erica se vai tornando peça central nos combates e na busca que se desenrola ao longo dos 15 capítulos.

Diria que a história é bem construída, apesar de por vezes repulsiva, por James Tynion IV (um experimentado argumentista americano, do Wisconsin, do universo Batman), sendo que o desenho é excecionalmente dinâmico, impactante e adequado para o contexto da história. É o desenho do Italiano Werther Dell’Edera que nos atrai para querer aprofundar esta história, apesar de o vermelho ser a cor dominante. É um desenho que joga muito bem com a história, cru, bem ambientado a um contexto angustiante e opressivo, por um autor que já passou pelos universos de Hellblazer ou Batman.

Pra quem goste de boas e assustadoras histórias de terror, tem aqui um exemplo muito interessante e distintivo. Para quem gosta de um bom desenho, mas é fã de policial ou mistério, arrisque com cuidado…







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