quarta-feira, 8 de junho de 2022

As opiniões de Miguel Cruz sobre: "Ceux qui Brûlent", de Nicolas Dehghani e "Iruène", de Rodolphe e Griffo

Aqui ficam mais duas opiniões e sugestões de leituras francófonas por Miguel Cruz.




Ceux qui Brûlent

Esta é uma BD já de 2021 que tinha chamado a minha atenção, mas que só adquiri recentemente, numa deslocação da hora de almoço à zona da Almirante Reis. A razão para ter apanhado rapidamente e sem hesitação esta BD de Nicolas Dehghani (Ed. Sarbacane) das prateleiras lá do fundo é simples: Uma belíssima capa, um belo livro objeto (com mais de 170 páginas), lombada de tela, um excelente desenho, umas cores fantásticas, uma criação de um ambiente angustiante de belíssimo efeito, o negro desta desagradável situação, a contratar com uns azuis de céu belíssimos.

Tudo neste livro é de belo efeito, e a atração para a sua leitura é total, agarrados que ficamos a um ritmo de narração absolutamente fantástico.

A nossa heroína – Alex – é uma polícia que está em plena recuperação psicológica, e que acaba de regressar ao serviço para lhe ser “dado” um novo parceiro, com um nome incomum, frustrado, triste e desajeitado (no mínimo!). A criação de este novo par de detetives acontece precisamente numa altura em que a cidade vive uma nova onda de crimes, em que é usado ácido nas vítimas.

Apesar da pressão decorrente do machismo de um grupo dos seus colegas, e da dificuldade de “funcionar” com o seu novo parceiro, Alex acaba por se envolver, nem sempre da melhor forma, na investigação desta onda de crimes. Já os seus colegas e chefias, tudo fazem para os afastar e humilhar.

O ritmo dos acontecimentos é estonteante, o parceiro de Alex é absolutamente desesperante, a grande maioria das personagens é detestável, as situações criadas, muitas vezes por aparente acaso, são angustiantes.

Lê-se de um fôlego, a investigação acaba por ser rápida, com alguma superficialidade, sendo que o importante nesta narrativa são as personagens, e a relação entre elas e o seu esforço de superação. Ganhar-se-ia em ter um pouco mais de caracterização de Alex, mas mesmo essa aparente limitação é intencional, com estes “heróis” em situação profundamente depressiva.

É uma primeira obra deste autor, e é promissora. Um belo trabalho gráfico.






Iruène

Rodolphe é um grande autor, responsável pelo argumento de BDs que são, pelo menos para mim, referências, como Mary la Noire, Les Écluses du Ciel, L’Autre Monde, Commisaire Raffini, Le Blaireau, Taï-Dor, Kenya, Trent e tantas outras. 

Griffo é um desenhador que não precisa de apresentações: Munro, SOS Bonheur, Giacomo C., Sade, Samba Bugatti, Monsieur Noir e tantos outros. 

Iruène é o antigo espírito dos vulcões na mitologia das populações autóctones das ilhas canárias. Mas Iruène é também o título de uma Banda desenhada que junta estas duas grandes referências da BD Franco-Belga. Uma BD bela, intensa e saída do coração.
A BD começa em 1479 na ilha de Palma, no início de uma invasão espanhola. Rapidamente passamos à nossa personagem principal, em 2022, Alex, jovem publicitário de 36 anos, cuja vida se tornou particularmente difícil, uma vez que as suas noites foram invadidas por um – sempre o mesmo – pesadelo particularmente intenso. Não dorme e torna-se obcecado por aquele pesadelo, e pela entidade maléfica que nele o persegue, com Alex na pele de um guerreiro de outra época.
Gradualmente, o pesadelo começa também a tomar conta da sua realidade diurna. Como na citação inicial de Lao Tseu “Esta noite, sonhei que era uma borboleta. Sou um filósofo que sonha que é uma borboleta, ou uma borboleta que sonha ser um filósofo”?

Alex, obcecado, procura descobrir o significado do sonho, primeiro recorrendo à internet, a um psiquiatra, a um professor de história, acabando por se deslocar – num estado semi-consciente – à ilha de la Palma. Iruène, que fez um pacto com o diabo (na referência cristã) dos conquistadores espanhóis, continua a persegui-lo.

Não lia uma BD deste tipo, com esta temática e estilo narrativo já há bastantes anos. É um one shot de outros tempos, uma história como a que líamos na década de 90, recorda-me um pouco Servais. Será uma BD um pouco datada? Talvez, sendo o desenhado absolutamente espetacular em qualquer dos períodos – o atual e o da época das “conquistas”. No entanto, eu não usaria a expressão “datada”, mas mais a de “nostálgica”. Os referenciais de uma época da BD estão lá, mas a BD é moderna e convincente, bem narrada, com um desenho que é meio texto, e o tema é efetivamente o da viagem no tempo. 

Trata-se de um “doce” para os leitores mais tradicionais de Banda Desenhada, diferente, na sua estrutura, da grande maioria da produção recente, mas que trata alguns temas atuais, de forma clássica, sendo que este doce, vê-se bem, foi “cozinhado” com envolvimento total e um enorme prazer dos autores. E quando o prazer dos autores emana de uma BD, de qualquer BD, esta é sempre recomendável.

O álbum, no seu final, inclui um pequeno dossier em que Rodolphe entrevista Griffo. Esta BD tem como base um sonho da companheira do desenhador, quando ambos se instalaram nas Canárias, e é naturalmente influenciada pela situação angustiante vivida com a erupção recente do vulcão - situado a cerca de 2 kms da casa onde esta BD foi elaborada. 98 pranchas editadas por Daniel Maghen ed.

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