quarta-feira, 22 de março de 2023

A opinião de Miguel Cruz sobre: "Kleos - #1", de Eacersall, Latapy e Causse e "La Meute", de Samama e Herry

Kleos – tomo 1

Kleos é uma nova série de que o título do tomo 1 nos dá uma boa ideia da base da narrativa: Celui qui Rêvait de Gloire (Aquele que Sonhava com Glória, numa tradução literal).

Philoklès é um jovem pescador, habitante de uma vila grega no Mediterrâneo, que se vê atacada por piratas no ano de 499 a.c.. Admirador das epopeias gregas, da Ilíada, da Odisseia de Homero, Philoklès é um sonhador cujos ideais são formatados à luz da mitologia grega. Quando a sua aldeia é pilhada, este jovem exige das autoridades alguma reação, e o envio de uma expedição que permita pôr termo a estes frequentes ataques. Ingénuo, inconsciente e empenhado, Philoklès acaba por embarcar no seu frágil barco de pescador, para seguir a pista dos piratas.

Rapidamente vai descobrir que isto de ser um herói não é fácil e que, se calhar, a sua preparação para esta aventura não é a melhor. Com alguma sorte à mistura o jovem vai prosseguindo o seu périplo, sendo que o tomo 1 termina num momento em que, após ser ferido e o seu barco ser incendiado, parece que essa sorte terminou. Um bom tratamento do suspense.

Pela nossa parte, acompanhamos esta aventura com gosto, num relato que evidencia a violência de uma sociedade marcada pela lei do mais forte, pela escravatura e pela brutalidade corrente. Somos confrontados, assim, com alguns elementos históricos interessantes, relativos à civilização grega, bem como com as tradicionais tempestades no mar, sereias, oráculos e as mulheres da ilha de Lesbos. Mark Eacersall e Serge Latapy são os dois responsáveis pelo argumento, tendo o primeiro já o registo de algumas BD muito interessantes e com bom acolhimento do público (“Cristal 417” e “Tananarive”, por exemplo), e sendo o segundo um jornalista especialista em civilização grega.

A desenhadora, Amélie Causse apresenta-nos um conjunto de pranchas bem estruturadas, grandes espaços, boas perspetivas, com um desenho sóbrio, moderno e agradável, rico em detalhes de natureza histórica, com cores muito luminosas. As imagens são expressivas e a história evolui com rapidez e consistência. Editada pela Bamboo, esta BD constituiu para mim uma agradável surpresa. Não apresenta, à partida, uma grandiosidade de um “Murena” ou de um “Alix”, mas não deixa de ser uma abordagem interessante, curiosamente conseguindo conciliar preocupações de atualidade e enquadramento histórico credível, e de leitura satisfatória.

A vontade de conhecer a sequência desta história é animada pela notícia da previsão da publicação do tomo 2 no final de abril de 2023.


La Meute

Aude Samama já esteve em Portugal, na Amadora, sendo que na altura tinha desenhado uma BD passada em Lisboa, e de autoria de Jorge Zentner, com o título de “Lisbonne, Dernier Jour”. Tinha também desenhado um livro sobre Amália que era acompanhado de um CD, parte integrante de uma coleção de BD/CDs. Desenho bonito, em aguarelas, composições de tipo “fotográfico”, cores alegres.

Recentemente, esta autora, acompanhada de Cyril Herry no argumento, lançou a BD La Meute (A matilha), mantendo a sua abordagem elegante e bem estruturada de um “quadro” em cada vinheta. Bonito, e conseguindo, apesar de tudo, manter uma boa sequência de movimento. O desenho é um elemento-chave para a qualidade desta obra, até porque se adapta muito bem a uma história feita de confronto de diferentes pontos de vista. A edição, como sempre muito cuidada, da Futuropolis, ajuda a tornar esta BD apelativa.

A história tem como ponto de partida a fuga de casa de dois adolescentes, Marina e Victor. Essa fuga, em direção ao bosque, vem agravar um sentimento de insegurança nos habitantes de uma vila cujos rebanhos têm estado a ser alvo de ataques de uma matilha de lobos.

Os tópicos abordados nesta história, para além dos ambientes familiares tóxicos que justificaram parcialmente a fuga, são os que facilmente decorrem da situação de insegurança atrás descrita: Os rumores, a má língua e os rancores, a inveja, os fingimentos, as feridas do passado. Esta é a dinâmica desta perturbante narrativa.

Com base na fuga dos dois jovens e do seu percurso, esta BD mostra-nos a visão gerada na intimidade de várias casas familiares da aldeia, criando um ambiente doentio, urgente e febril, numa narrativa surpreendentemente intensa e bem conduzida, apesar de vários momentos de grande “desagradabilidade”.

A contemplação da natureza, de grandes espaços e a relação entre os dois jovens constituem também uma boa oportunidade para o pincel de Samama, generosa nas cores e detalhada na apresentação de um ambiente melancólico e pleno de “electricidade”.
Ou…Como transformar uma história aparentemente banal num relato de forte intensidade emocional!

Interessante e merecedor de recomendação, trata-se de um one shot cujo argumento é da responsabilidade de um autor que me era totalmente desconhecido. 
Tenho, no entanto, um senão a apontar: A capa, pouco chamativa, com demasiado espaço ocupado pelo rosto em primeiro plano dos dois jovens, e que é redutora da interpretação do conteúdo da BD.


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