quinta-feira, 2 de março de 2023

A opinião de Miguel Cruz sobre: "L’Elixir de Dieu - t.1 - Spiritus Sancti", de Gihef e Galland e "Cache-Cache Batôn", de Lepage

 


L’Elixir de Dieu - t.1 - Spiritus Sancti

Não é que não pudesse ter usado a mesma frase para outros comentários que já aqui fiz, mas como não calhou, começo por usar a célebre tirada dos Monty Python para dar início ao comentário da BD L’Elixir de Dieu (T.1: Spiritus Sancti): And now, for somenthing Completely Different!

Estamos num convento católico, no sul dos Estados Unidos, ano de 1929 (em plena proibição) as personagens centrais são freiras, incluindo uma noviça ruiva e sardenta de passado duvidoso, sem grande escrúpulo em recolher algumas das esmolas para “eventualidades futuras”. A missa é celebrada por um padre de comportamento duvidoso, quer na relação com a congregação, quer na relação social com as terras envolventes. As freiras têm, cada uma, capacidades e maneiras de ser muito distintas. A máfia local considera aquele convento como local estratégico para o tráfico e armazenamento de álcool ilegal. A já mencionada noviça ruiva foi, descobrimos, a namorada de uma personagem da máfia que controla uma outra zona do país. O KKK tem uma atividade intensa na região, e um dos seus alvos não encontra melhor esconderijo do que um espaço no interior do convento (por acaso, usado no passado para produção de álcool!). O dono do terreno onde se situa o convento faleceu, e o banco prepara-se para concretizar a sua venda.

É este cocktail explosivo (sim, sim, muito explosivo) que está na base do divertido argumento desta BD e dos seus diálogos cáusticos, que nos agarram desde a primeira página, com o auxílio de um desenho realista-humorista de boa qualidade, embora num ou noutro ponto ainda se perceba alguma rigidez por parte da sua jovem autora: Christelle Galland. O toque feminino na sensibilidade do desenho é notório, e é sempre bom ter mais uma autora neste “circuito”.

O primeiro tomo termina com uma intensidade grande, criando o suspense adequado para o tomo 2. O ritmo de acontecimentos é tão elevado, que este livro tem de ser lido de um só fôlego. Por vezes os acontecimentos até coincidem com o que estaríamos à espera, mas a forma como tudo se desenrola é tão disparatado e engraçado que ficamos surpreendidos.

Tudo aqui é surpresa, uma BD não significativamente divulgada, da editora Bamboo. Pela minha parte gostei da leitura, a composição de página é agradável e bonita, sem grandes floreados, e aguardo com curiosidade e interesse o que se vai passar não apenas com a noviça irlandesa, mas também com as restantes freiras, bem-dispostas, práticas, emocionais e solidárias (por vezes…).



Cache-Cache Batôn

Emmanuel Lepage é um dos autores de BD mais admirados do panorama atual da Banda Desenhada Franco-Belga. Quer pelos temas normalmente abordados, associados à compreensão dos comportamentos e motivações sociais, e ainda à defesa do ambiente, quer pelo seu extraordinário desenho realista.

Recorde-se, deste autor, a publicação em Portugal, de obras como a Terra Sem Mal (Vitamina BD) ou Muchacho (2 tomos publicados pela ASA). 

A grande maioria das suas obras contêm algo de autobiográfico – o autor tem, aliás, viajado pelo mundo e conhecido, bem como relatado, formas de vida muito distintas – e marcadamente intimistas. A BD Cache-Cache Batôn, nome de um jogo infantil que o autor jogava quando criança, é, como o título indica, um relato de uma sua experiência de juventude, retratada nos dias de hoje, com o autor a entrevistar vários dos intervenientes, num exercício sempre interessante de conciliação de diferentes memórias para tentar resumir uma realidade.

Com enorme pudor e evidente carinho (e nalguns casos um desejo de que as suas memórias fossem verdadeiros retratos da realidade o que sabemos não ser possível, e constatamos não ser correto todas as vezes que tentamos recordar ou retraçar eventos da nossa juventude), Lepage revisita a experiência dos seus pais e de alguns casais amigos que adquiriram uma propriedade rural de cerca de 5000 m2 para tentar desenvolver uma experiência de vida em quase autarcia.

Trata-se, por isso, de uma mistura de relato biográfico com um documentário (incluindo entrevistas) que procura, num tom bastante nostálgico, expor as verdadeiras teias de relações, as dinâmicas pessoais e de grupo de que não se pôde aperceber enquanto criança e, consequentemente, avaliar as razões do desfecho da experiência do grupo de adultos que lhe serviu de modelo numa fase inicial da sua vida.

A noção de que estas experiências utópicas, na altura ditas modernas, são algo do passado, é clara, e o caracter nostálgico está associado à sua fase de crescimento e aprendizagem e não ao modelo de sociedade. Outra época, portanto, relatada num projeto pessoal do autor!

A narrativa é muito fluida, agradável, fácil de seguir, e muito ajudada por desenhos soberbos, com cores magníficas, que permitem um tom jovial, leve, luminoso e agradável a toda a história. Um grande autor, numa obra interessante e de conteúdo pouco comum, editado pela Futuropolis.








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