quinta-feira, 11 de maio de 2023

A opinião de Miguel Cruz sobre: "Ange Leca", de Graffin, Ropert e Lepointe, "BRZRKR - volume one", de vários e "Brancusi contre États-Unis", de Nebbache

 


Ange Leca

Admito que o título em francês não seja o mais feliz para uma tradução em português, mas Ange Leca é o nome da personagem central desta história policial passada no período da Belle Époque, mais concretamente no inverno de 1910, quando Paris é assolada por fortes cheias que não apenas causam o caos na cidade, causando várias vítimas, como trazem (literalmente) ao de cima provas macabras de um crime hediondo.

Ange Leca, jornalista rebelde e inadaptado, de origem corsa, que atravessa várias crises na sua vida, com um pendor para o álcool e, em particular, para o consumo da “fada verde”, amante da mulher do seu patrão, acompanha a descoberta de uma mala com o torso de uma mulher, só com um braço e com os seios amputados.

Teimoso, acompanhado do seu bem-comportado cão Clémenceau (sim, o mesmo nome do primeiro-ministro francês, e que foi também jornalista com importância no caso Dreyfus), Ange Leca decide prosseguir o seu inquérito, apesar de ter sido despedido, e dos amargos de boca que as suas investigações lhe vão trazendo.

Esta BD editada pela Bamboo conta com os desenhos realistas, com cores muito suaves e agradáveis, e contornos adaptados à época em causa – Belle Époque – de Victor Lapointe, que claramente se delicia com os pormenores incongruentes de uma Paris inundada, e infestada de ratos, bem como com os momentos dos espetáculos típicos da época, não deixando de apresentar os claros contrastes entre a vida de uma burguesia entusiasmada e despreocupada da época e a de uma classe social pobre, de trabalhadores manuais, costureiras e aspirantes a atores e atrizes. De leitura muito agradável. 

O argumento de Tom Graffin e de Jérôme Ropert é muito bem construído, credível, bem trabalhado numa evolução inteligente da investigação, o acaso faz bem as coisas, mas sem ser demasiado grosseiro, e a conclusão é muito interessante, embora nos deixe um pouco “desanimados” por não ser possível ir mais longe. Da maneira como esta BD termina, não é difícil imaginar que possa haver uma continuação, e que este “one shot” se possa transformar numa série. Veremos, admito que tudo dependerá do sucesso deste álbum. Na minha opinião merece o sucesso, até porque gostaria de ver uma continuação das aventuras do insensato Ange Leca e do seu inteligente e sensato cão Clémenceau.

No final do álbum os autores apresentam um pequeno dossier sobre a época, sobre algumas personagens de referência, sobre as cheias em Paris e, portanto, sobre a inspiração para a estruturação da história. Interessante.






BRZRKR - volume one

Finalmente (só agora?!) consegui ler o tão falado primeiro volume da nova série de Comics criada por Keanu Reeves, que teve a ideia original e que escreveu o argumento com a colaboração do bem conhecido Matt Kindt. Valeu a pena.

Numa avaliação factual, importa dizer que não há aqui nada de particularmente inovador. As influências de Wolverine, de Conan e de, obviamente, John Wick, estão presentes, sendo que a narrativa é hábil em nos apresentar um universo novo, que mistura todas estas referências num todo consistente, apesar de alguns momentos de déjà vu. 

Este volume atinge, como seria de esperar, níveis de violência muito elevados, e todo o universo abordado é extremamente duro. No entanto, este volume lê-se com facilidade, gosto e uma consciência de voyeurismo que apesar de tudo não nos envergonha, dada a qualidade dos diálogos e a qualidade do desenho (já lá vamos).

A personagem central, Berzerker, é um guerreiro (meio mortal, meio deus) imortal, experiente e competente, condenado a uma vida de violência, que aceita – de certa forma contrariado, obviamente, e muito desconfiado – trabalhar para uma agência governamental americana, com o objetivo primeiro de tentar compreender as suas origens e, já agora, de se poder tornar mortal, para encerrar uma cansativa vida de violência, já com vários milhares de anos.

O pitch é, por isso, razoavelmente bem conhecido, o tema da imortalidade é interessante, particularmente por incluir várias cenas do passado – o que para uma vida de cerca de 80 mil anos, permite abordagens interessantes, quer na história, quer no desenho.
O desenho de Ron Garney é impecável, entusiasmante e cativante, expressivo e cinematográfico. O nosso personagem B. apresenta, como calculávamos, uma certa semelhança com aquele ator que entrava no Matrix e no John Wick, não sei se estão a ver… Uma palavra para as cores, com predominância para o negro e para as cores quentes, que são muito bem trabalhadas.

Constitui uma leitura que nos distrai um bom momento, e ao acabarmos o primeiro volume ficamos com vontade de ler o segundo, o que espero fazer brevemente, uma vez que ele já saiu em 2022. Editado pela Boom Studios.






Brancusi contre États-Unis

Hesitei muito em dedicar tempo à leitura desta BD, afinal há tanto para ler e tão pouco tempo! Mas acabei por “lhe pegar” e penso que ainda bem, porque gostei bastante, e mais do que isso, esta BD tem uma abordagem muito distintiva quer na história que aborda e desenvolve, quer no seu desenho.
Constantin Brancusi é um escultor romeno, a viver em França, de que começamos por conhecer o seu momento de desejo de independência depois de anos a fazer trabalho repetitivo de preparação de cópias, com o grande mestre Rodin. 

Numa fase em que a sua reputação já está bem consolidada, particularmente no velho continente, Brancusi envia obras suas para os Estados Unidos, para uma exposição. O problema é que uma sua obra, em cobre, denominada de “O pássaro”, quando aberta na alfandega, à chegada a Nova York, é tomada por um produto industrial, sendo considerado que não constitui qualquer obra de arte, pelo que lhe é imposta uma taxa aduaneira. Apesar de ter de voltar para França, Brancusi decide mover uma ação no tribunal contra tal decisão, chocado com o entendimento sobre arte dos funcionários americanos.
Ao longo desta BD podemos acompanhar as notáveis sucessões de discussões em tribunal, acompanhadas por um amigo de Brancusi, Marcel Duchamp, que lhe desenha cartas de relato, ao mesmo tempo que vamos acompanhando as reações, a raiva e a perturbação de Brancusi. Muito desta obra tem a ver com a conceção de arte, com a definição de arte e a subjetividade que lhe é associada, com os sentimentos que suscita, com a relação entre moderno e contemporâneo, e também com a inveja entre artistas.

O Francês Arnaud Nebbache realiza esta BD aproveitando para esta bem-humorada e inspirada história esses dois monstros artísticos – o romeno pai da escultura moderna e o pintor (e depois escultor) surrealista Marcel Duchamp, que foram muito amigos – aproveitando as muitas referências existentes sobre o pensamento dos artistas sobre arte, e sobre arte moderna. Muito interessante e divertido, sem cair em excessos de profundidade conceptual ou filosófica.

O desenho é diferente do habitual, pois não tem contornos, uma verdadeira sobreposição de sombras, com contrastes de luz, o que obriga a um tratamento de cores muito específico, para assegurar uma maior legibilidade das pranchas. Brancusi, com a sua longa barba branca é sempre branco. O desenho tem também uma estrutura geométrica e arquitetural que se revela bem conseguido e agradavelmente legível. Pelo que percebi, é uma primeira obra do autor.

E afinal, porque razão a escultura se chama “o pássaro”?!

Editado pela Dargaud, 128 pranchas e um formato um pouco mais pequeno que o da tradicional BD.

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