quarta-feira, 2 de novembro de 2022

As opiniões de Miguel Cruz sobre: Frankenstein, de Bess; Toutes les Princesses Meurent Après Minuit, de Zuttion e Tuskegee Ghost, de Eckartsberg e Dauger

Hoje aqui ficam três opiniões de Miguel Cruz sobre géneros muito diferentes de BD, mas que não deixam de ser boas leituras.




Frankenstein

Na edição de 2021, é importante recordar, um dos autores mais procurados no Amadora BD foi Georges Bess, o que é compreensível, tratando-se de um dos nomes maiores da BD europeia, (tendo a sua adaptação de Drácula acabado de ser editada pela editora A Seita), e atenta a sua idade que vai tornando mais raras as suas presenças em festivais deste tipo. 

Este simpático autor que trabalhou com o “Enorme” Alejandro Jodorowsky (ainda há pouco tempo reli o Incal, uma das minhas grandes referências) por exemplo no excelente Le Lama Blanc (de que em Portugal a Asa publicou o primeiro tomo, creio que no início do século), confessou numa recente entrevista que não queria nada, mas mesmo nada, realizar a adaptação de Drácula, porque achava que isso era tema do passado e que não havia nada a acrescentar. Eu pessoalmente tenderia a achar o mesmo, tantas já foram as adaptações em livro e cinema, mas isso seria ignorar a enorme qualidade gráfica do autor, quer no desenho, quer na estruturação da narrativa. E o sucesso de Drácula levou à subsequente adaptação de Frankenstein, que agora aproveito para comentar, apesar de a sua edição já ter alguns meses.

Também a preto e branco, esta obra é composta por 200 páginas da narrativa bem conhecida, mas em que cada prancha mostra o prazer do autor no enquadramento gótico, no aproveitamento dos espaços, dos rostos vincados e sofridos, na natureza opressiva, na revolta dos elementos, nos dilemas morais e consequentes raivas e revoltas. A evolução da criatura ao longo da narrativa é natural e bem retratada, a angústia do Dr. Frankenstein é palpável.

A história continua a não ser das minhas favoritas – creio que a primeira impressão que ficou da juventude, será muito difícil de alterar -  mas o aproveitamento e adaptação por parte de Bess é muito boa, e o livro é um novo “tour de force” de um grande desenhador. 

A leitura é demorada, pois a profundidade no tratamento da obra é grande, e ainda bem, pois o tema não é fácil de digerir nem particularmente agradável e, como sabemos, o romance de Mary Shelley não é particularmente positivo nem demonstra uma grande confiança na raça humana.

Uma edição cuidada, de grande qualidade gráfica, da editora Glénat.





Toutes les Princesses Meurent Après Minuit

Todas as princesas morrem após a meia-noite. Um interessante e longo título de um autor para mim registado como perfeito desconhecido: Quentin Zuttion. Este jovem francês, vim a saber mais tarde, já tem algum histórico de publicações com o pseudónimo de Mr. Q. 

O título e a capa geram curiosidade e remetem para um relato intimista, expectativa que se revela correta, pois toda a BD é passada em 24 horas (mais umas “pontinhas” no final) entre quadro paredes e um jardim de uma casa algures nos arredores de uma qualquer metrópole francesa. 
Esse dia de agosto de 1997 é o dia da morte da princesa Diana, como vemos pelas notícias na televisão. Cinco personagens interagem sob os nossos olhos: Lulu, um rapazinho de 8 anos, o seu amigo Yoyo, um pouco mais velho, convidado para um dia de brincadeiras, Cam a irmã de Lulu, já com 15 anos, e os pais de Cam e Lulu. Há ainda uma aparição ocasional e escondida de um “namorado” de Cam, sendo que todo o dia é marcado pela presença de um sol abrasador (a pequena teenager bem o sentirá) e de um calor angustiante e exacerbador de comportamentos.

São 24 horas em que tudo corre mal, e a vida futura desta família não mais será a mesma. 
O autor, nesta BD intimista, condensa em 24 horas e com um número limitado de atores, uma abordagem de diversidade ao amor. O amor que nasce (ou a sua curiosidade), o amor que cessa, o amor passageiro, o amor envergonhado (ou a sua dúvida) porque não correspondente aos padrões esperados.
Lulu brinca às princesas com bonecas que eram da sua irmã, criando uma narrativa condutora de toda a BD para abordar, com um desenho sensível e cores agradáveis, o tema da homossexualidade (e da procura do belo príncipe) e da relação com o pai, ao mesmo tempo que a relação dos pais dos dois jovens se vai desagregando.

É uma história (banal, de uma família comum) relatada com doçura, centrada numa criança de uma reconfortante pureza e inocência, em que tudo são pequenos nadas, mas em que todas as personagens saem necessariamente transformadas. O tom de “memória”, desenvolvido principalmente através das cores, explorando a ligação a recordações de outros momentos aparentemente banais de “crescimento” na vida de criança e de adolescente, é bem trabalhado.

Esta edição cuidada e elegante da Lombard constitui um exercício diverso do que tem vindo a ser recentemente publicado. Só por isso merece o destaque: Não apenas é uma obra bonita, como é diferente da “moda” o que, convenhamos, é refrescante.






Tuskegee Ghost - tome 1

Tuskegee Ghost é um daqueles álbuns de Banda Desenhada que, normalmente não me atrairia particularmente. Em primeiro lugar, o título não é particularmente chamativo. Em segundo lugar, a sua inclusão na coleção cockpit da editora Paquet, remete-nos logo para uma aventura de aviação e, portanto, para um potencial déjà vu. Finalmente, o desenho, embora elegante e bastante legível, tem o seu quê de ilustração, que se parece sobrepor ao fluxo narrativo. E, no entanto, há aqui qualquer coisa que merece a atenção… 

Esta BD vem romancear factos reais da segunda grande guerra, mais concretamente a participação dos Tuskegee airmen, um esquadrão exclusivamente composto por pilotos de cor, e aborda a luta deste grupo pela sua integração e por mínimos de respeito de colegas e da hierarquia. Desconhecia, de todo, esta história. E quando á minha hesitação relativamente ao título, estamos esclarecidos!

A narrativa inicia-se na Florida no ano de 1969, com a deslocação em viagem de Mark e da sua namorada, branca, para visitar os seus pais. Tudo começa a correr mal, desde uma agressão racista, ao mau ambiente entre filho e pai, quando se sabe que Mark abandonou os seus estudos e se dedicou à pilotagem.

Ao longo da BD vamos percebendo a raiz dos problemas que o pai de Mark (na capa) tem com o facto de o seu filho querer pilotar: tendo sido Tuskegee airmen, humilhado pelos seus superiores, esquecido pela história e traumatizado pelos combates e por um acidente em particular, o pai de Mark quer, efetivamente, uma vida diferente para o seu filho. 

Portanto, quanto à minha segunda hesitação, a do déjà vu, está claro que ela não tem razão de ser. A abordagem é nova e interessante. Muito interessante, de facto. A luta na Europa e no Pacífico cria laços profundos de coesão entre os cidadãos, mas verifica-se que nem todos são iguais, ou nem todos têm tratamento e reconhecimento iguais.

Não se trata de um mero “documentário” ou apresentação de factos, sendo a narrativa realista e bem tratada, com fluidez e interesse, sabendo-se que a matéria tratada nos vai causar, necessariamente, momentos de incompreensão e angústia ou mesmo raiva.

Trata-se de um primeiro tomo, onde vamos gradualmente levantando o véu sobre a experiência traumática da participação na segunda grande guerra, com o pai de Mark a ter de consultar um psiquiatra que o ajuda a recordar e a expor os eventos vividos. A história fica em suspenso para um segundo tomo, e as suas últimas páginas deixam-nos com vontade de pegar imediatamente na continuação, que está a ser preparada por Benjamin von Eckartsberg e pelo desenhador Olivier Dauger.

Uma nota final para o desenho deste último, retomando o meu primeiro parágrafo. Há, efetivamente, uma componente de ilustração que ressalta do desenho, e que é posto em evidência pelas cores. E para minha grande surpresa, resulta muito bem, e é apropriada à história, e à envolvência do leitor nos acontecimentos quer da década de 40, quer da década de 60. Legibilidade máxima e boa variabilidade de enquadramentos. 

Aguardemos, então, a conclusão, no tomo 2, deste relato da passagem de pai e filho, ambos bem avançados sobre os seus tempos, por situações desagradáveis e nem sempre bem conhecidas de racismo.




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