quarta-feira, 30 de novembro de 2022

As opiniões de Miguel Cruz sobre: "RIP - tome 5", de Gaet’s e Monier; "Les Tuniques Bleues - tome 66", de Lambil e Kris; e "La Dernière Reine", de Rochette

Estão de volta as opiniões de Miguel Cruz sobre edições publicadas em outros países.

Aqui ficam três delas e que podem ser boas leituras para as editoras portugueses poderem ver se lhes interessam publicar em português.


RIP - tome 5: Fanette mal dans la peau des autres



Sim, é o que estão a pensar. RIP é mesmo de Rest in Peace. Esta série, que me foi referida como estando a fazer grande sucesso no mercado franco-belga, é surpreendente pelo tema, e ainda mais surpreendente pela forma como o trata. O tema é a morte. Com pequenos capítulos separados por citações sobre a morte ou a forma de a encarar, que vão desde letras de música a frases célebres de filmes, com autores clássicos e recentes, de Shakespeare a Stephen King, esta série é um thriller negro, que nada nos poupa na descrição de uma vivência desagradável e “podre” de um grupo de protagonistas – quase todos – dedicados à atividade de retirar todos os bens de valor de habitações de defuntos.

A sordidez da atividade e da vida destas personagens já seria resultado natural da atividade em si, mas aumenta quando se sabe que a atividade que desenvolvem – a pedido – ocorre com o fito de evitar que outros, nomeadamente alguns herdeiros, tomem posse dos bens. Tudo piora se vos disser que os bens são retirados quando a morte é identificada, e na presença dos cadáveres, normalmente já em avançado estado de decomposição. Pois é…

Idealizada para um total de seis tomos, no conjunto da série quatro deles são dedicados a quatro dos homens que fazem este terrível “trabalho”, e dois a personagens que com eles se cruzam, como sejam um polícia (científico) infiltrado, ou a empregada do bar onde se reúnem num final do dia de trabalho: Fanette.

Cada tomo é, portanto, abordado do ponto de vista de cada uma das personagens e por ela narrada. Todos os tomos abordam, no essencial, o mesmo período de tempo, ao qual se escapa brevemente apenas porque cada personagem tem a sua vida anterior, as suas motivações e os seus segredos. Cada tomo pode ser lido isoladamente, mas a apreciação da maestria com que estas histórias se cruzam e a luz que se faz em cada tomo sobre detalhes abordados nos anteriores, só se consegue com uma leitura do conjunto. Um spoiler (ou talvez não): a generalidade das personagens não termina bem a sua história!

No caso do tomo 5, Fanette é uma personagem melancólica, taciturna e negativa, o que se compreende pelo seu dia a dia e pelas “figurinhas” que tem de frequentar. Mas, neste tomo, descobrimos como veio parar a este miserável emprego, e percebemos melhor certas das suas reações e comportamentos, e o seu efeito sobre o que aconteceu a outras personagens. 

O desenho é elegante, normalmente escuro, com muitas sombras e muitos cadáveres, semi-realista, e com muitas moscas. Os ambientes são maioritariamente noturnos (dentro e fora do bar). O argumento é excelente, credível, com as ligações entre os vários tomos a serem surpreendentes e extraordinariamente bem conseguidas, o suspense – apesar de conhecermos o centro da trama desde o tomo 1 – é elemento central da narrativa, e as personagens são cativantes (nem sempre no bom sentido, algumas são o que chamaríamos de umas verdadeiras bestas!). O humor é negro, mas está presente a bom nível. A Editora é a “petit à petit”; as BD, adequadamente, são de formato mais pequeno que o tradicional, apesar da sua média de 90 páginas por tomo; e os autores são Gaet’s (argumento) e Monier (desenho). Pela minha parte, mal posso esperar pelo tomo 6!


Les Tuniques Bleues - tome 66 - Irish Melody


A série Os Túnicas Azuis (Les Tuniques Bleues) tem mais de 50 anos e continua a ser um grande sucesso por parte da Dupuis, ancorada num leitorado que continua fiel a uma divertida série da sua juventude, passada na terrível guerra civil entre os Estados do Norte e os Estados do Sul, que se denominou guerra da secessão, com dois personagens marcantes: um sargento leal e dedicado, com grande intensidade na ação mas nem sempre muito inteligente, e um cabo mais espertalhão, mas que tudo faz para evitar estar em perigo, incluindo ter ensinado o seu cavalo a cair ao primeiro disparo. 

Os primeiros tomos tinham a assinatura de Cauvin e de Salvérius no desenho, sendo que este último faleceu, em 1972, quando a série começou a ter sucesso e foi substituído por Lambil que, com o seu desenho bonito, um pouco menos caricatural, e detalhado, se impôs ao longo de 60 tomos. 

Em Portugal foram publicados vários tomos, quer pela Edinter, quer pela Asa (com e sem e Público). Os cavaleiros do Céu, A recruta dos Azuis, Black Face, o Frade, Os Azuis a preto e Branco são alguns dos mais de 20 tomos publicados no nosso país.

Entretanto, Raoul Cauvin, um dos mais prolíficos argumentistas da banda desenhada de humor franco-belga, faleceu aos 83 anos em 2021, ano em que foi ainda publicado o tomo 64 da série Les Tuniques Bleues. Em 2020, e extraordinariamente, foi publicado o tomo 65, da responsabilidade de José Luis Munuera e de BéKa (o par Bertrand e Caroline que também foi responsável pelo argumento da nova série Champignac). 

Aos 86 anos, Lambil surpreende-nos desenhando um último albúm dos Túnicas Azuis, agora na companhia de Kris, que substituiu Raoul Cauvin no argumento.

Esta aventura passa-se na Virgínia, e tem o seu início a 17 de março de 1862, com a Brigada Irlandesa dos exércitos do Norte a celebrar a sua festa nacional – St. Patrick’s Day. 

O Sargento Chesterfield “fura” a festa quando anda à procura do cabo Blutch, eterno potencial desertor. Um dos soldados irlandesas acredita ter reconhecido em Chesterfield um primo distante e assegura-lhe um caloroso acolhimento, e a sua integração junto dos “bravos” Irlandeses. O Sargento passa, durante uns dias a integrar a Brigada Irlandesa, Blutch, por seu lado, tenta tirar esta história a limpo, e cruza-se com a Brigada Irlandesa integrante dos exércitos… do Sul. 

O cúmulo é que as “brilhantes” chefias de ambos os lados decidem que haverá uma batalha entre as duas Brigadas Irlandesas. 

Esta é daquelas séries simpáticas e intemporais que nos acompanham há muitos anos, e que se leem muito bem, com algum interesse histórico, mas essencialmente com enorme bonomia e boa disposição. Este último tomo é engraçado por introduzir personagens irlandesas, os seus comportamentos, as suas motivações, as suas complexas relações familiares. Essa é a mais-valia deste volume, sendo que a história não nos avança muito.

Quanto ao desenho, como sempre impecável, ao serviço do bom humor, com muito detalhe, movimento, boas perspetivas e uma enorme seriedade e sensibilidade a tratar eventos desagradáveis. Adeus aos desenhos de Lambil, um obrigado pelas horas de boa disposição, e veremos se a série será continuada por outros autores.


La Dernière Reine



História dura, apesar de poética e sempre positiva (apesar de tudo), passada nos anos 20 do século passado, que nos conta uma breve história de um sobrevivente de 14-18, de alma e rosto destruídos. 

Nascido na zona montanhosa de Vercors, com uma ligação familiar à montanha e ao seu ecossistema de muitos milhares de anos, Edouard Roux (ruivo, tal como a sua mãe e muitos outros dos seus antepassados, e portanto mal vistos como malditos, feiticeiros/as e mais algumas coisas do tipo) é maltratado pelos locais quando jovem e encontra apoio apenas na sua mãe, que não volta a ver após a guerra, por vergonha quanto ao estado da sua face.

Edouard, trabalhador forte e incansável, consegue reencontrar o gosto pela vida e a sua forte determinação, através de uma máscara que lhe é preparada por uma jovem escultora com quem vive uma história de amor. Desta forma Edouard consegue-se reencontrar, consegue reencontrar a sua alma sensível e selvagem.

Edouard Roux e Jeanne Sauvage voltam ao local de infância do primeiro, espaço saudável, selvagem, exigente, belo, e aí Jeanne fica a conhecer a narrativa da última rainha, a última ursa.

Jeanne descobre que, afinal, longe de Monmartre (onde é passada uma parte da história), vai conseguir encontrar mais do que a inspiração que procura. Vai encontrar a verdadeira vida.

Uma bela história de amor, helás, pouco feliz, a vida da montanha, a incapacidade de viver em comunhão com a natureza, o papel dos animais, o sofrimento físico. Estes são os temas de mais uma belíssima BD de Rochette, com uma profundidade de diálogos e de sentimentos notável, de que já tinha falado na Revista JuveBêDê, a propósito de uma outra história na montanha.

Como diz Edouard Roux a determinada altura, sobre os humanos e os ursos: nós respiramos o mesmo ar, nós remexemos a mesma terra, nós bebemos da mesma fonte, nós somos da mesma família. 

O desenho é belo e magistral, ou não fora o autor um montanhista experimentado (e acidentado, com consequências graves), a angústia de certas situações e dos grandes espaços é excecionalmente bem retratada, a expressão no olhar dos ursos, perseguidos, acossados, aprisionados é excecional. A história editada pela Casterman constitui um romance de grande qualidade, para amantes de histórias que nos fazem refletir muito profundamente. Uma leitura forte que não é uma leitura fácil.

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